A Idade das Trevas já passou.
Os infernos em tons de cinzento e carvão, onde labutam os menos afortunados desde as quatro primaveras até à morte por exaustão, são hoje meras gravuras ilustrativas nos livros de História que nos contam as Revoluções Industriais e o início do capitalismo.
O ano é 2020, os capitalistas já não passeiam pelas fábricas de chicote na mão, e a maioria das relações laborais são hoje mediadas pelos Estados Sociais que floresceram no Ocidente a partir da segunda metade do século XX.
Pode-se dizer que vivemos numa sociedade de direitos, onde a necessidade de ocupar todas as horas com trabalho já não se confunde com a de sobreviver. O ser humano é hoje um ser livre, dono e senhor do seu tempo, solto das correntes que o prendiam a uma vida insignificante!
Ou será?
Apesar do crescimento económico estratosférico dos últimos 100 anos, as previsões do passado em relação a uma vida de mais qualidade e menos labuta revelaram-se redondamente erradas.
Apesar dos mecanismos económicos que nos prendem ao trabalho já não serem tão fortes, continuamos presos ao mesmo pela mentalidade enraizada (e poderosa) de que devemos viver para trabalhar, e não trabalhar para viver. Ser desempregado (o que em Portugal consiste em ter direito às necessidades mais básicas durante um curto período de tempo sem precisar de trabalhar), é um sacrilégio ocioso. Rejeitar horas extraordinárias é um crime. Sair do escritório à hora prevista é um atentado. É comum olhar com desdém para quem não confunda a sua vida pessoal com a profissional, porque o trabalho é a principal expressão de identidade para muitas pessoas.
O trabalho já não preenche apenas a vida dos indivíduos de estratos sociais mais baixos que labutam por um mínimo para poder sobreviver, sem tempo para pensar em mais nada que não satisfazer as suas necessidades básicas até que a velhice os leve.
Chega também na forma de obsessão às classes média e média-alta, que ligam a sua identidade a uma certa ideia de poder adquirido pela posição profissional e pelos seus rendimentos.
Culmina nas ideias ultrapassadas da generalidade dos empregadores, e este fenómeno é especialmente prevalente no nosso país, de que mais horas trabalhadas são sinónimo de compromisso do trabalhador (o chamado “amor à camisola”) e de maior produtividade (o que é obviamente errado, pois a produtividade diminui com o cansaço).
Mas a ideia maior que vai alimentando a subserviência da máquina que carrega o capitalismo é a ideia de que as desigualdades enormes que gera são aceitáveis porque todos podemos ser ricos se trabalharmos o suficiente. É comum a referência ao self-made man do sonho americano, como se este fosse a regra e não a exceção.
A mentira da meritocracia é suficiente para que toda uma sociedade aceite trabalhar todos os dias, e a cada dia mais, para enriquecer o 1% que detém 44% da riqueza mundial e que sai sempre a ganhar, quer a economia cresça, quer se afunde. Perante uma realidade como essa, o ideal para que a máquina continue a funcionar é pensar menos nestas questões, trabalhar mais horas e ficar rico (ou morrer a tentar).
Ou, como se diz na gíria portuguesa, vai mas é trabalhar, seu malandro!
Imagem: Time