Todos temos responsabilidade

Aug 5, 2020
Crónicas

Qualquer crise tem o nefasto efeito de agudizar as já muitas dificuldades de todos nós e de nos deixar impotentes face a um paradigma negro à nossa volta. O nosso esforço e resistência individuais parecem fúteis face a todo um sistema em trajetória descendente, que nos faz olhar diariamente para ele captando atenções que anteriormente direcionávamos sobretudo para dentro. Se a crise pandémica nos tornou mais atentos às condições sanitárias à nossa volta, a consequente crise económica deixa-nos também mais preocupados com os seus dados socioeconómicos que refletem a perda de riqueza na sociedade. Desde infetados e mortos a desempregados e PIB, os números estão cada vez mais na boca de todos nós, e na sua evolução vemos a esperança ou falta dela no nosso próprio sucesso a curto prazo.

A procura de responsabilidades

Ora, esta localização do olhar na sociedade faz-nos também procurar os seus mais altos representantes e tentar identificar responsabilidades entre estes, muitas vezes partindo de um sentimento de revolta e até raiva pela situação vivida. Afinal, como não o ter durante tal impotência face às dificuldades?

Hoje em democracia encontraremos e, diga-se, felizmente, um vasto número destes representantes: um Governo com 19 ministros e 50 secretários de estado, uma assembleia com 10 grupos parlamentares que englobam 230 deputados, diversos responsáveis por várias áreas da sociedade que servem o Estado (como por exemplo a DGS) e tantos,tantos mais. Isto levanta um problema inevitável para quem procura alijar responsabilidades: elas são muitas e estão repartidas.

Assim, e especialmente para quem tem estado sempre sobre o efeito de crises e dificuldades como os portugueses (a minha geração não se lembrará de ter vivido sem que “crise” fosse o termo mais comum de descrição da nossa economia) surge muitas vezes a tentação de criticar todos os intervenientes por igual. Esta avaliação conjunta de um sem número de coisas distintas, normalmente incide sobretudo nos políticos, categorizando-os de “todos iguais”, no que consiste quanto a mim, num simplismo que poderia ser evitado e que não o sendo, desenvolve consequências negativas para a opinião e debate públicos.

A crítica é um bem precioso

Poucas conquistas democráticas serão tão importantes como o direito à crítica. Como tal, não passará certamente pela cabeça do leitor que neste texto se esteja a fazer uma apologia ao silêncio e à não oposição. Esse não é, decididamente, o caso. Contudo, se criticarmos tudo e todos por igual, estaremos mesmo a fazer algum efeito com a nossa crítica? Provavelmente não…Não estaremos senão a fazer barulho que em pouco se distingue do silêncio em conteúdo. Estaremos a esvaziar o nosso direito à crítica e a torná-lo vão, no que, numa ironia cruel, ajuda ainda mais à manutenção do status-quo e à desconsideração da nossa voz na definição da sociedade. Ajuda, portanto, a que tudo fique realmente igual.

A generalização de uma caracterização de todos os intervenientes como igualmente maus desperta quanto a mim 3 principais problemas pela má utilização do direito à crítica que representa, e que aqui hoje proponho desmontar.

O ambiente irrespirável

Em princípio todos desejaremos que jovens se interessem e alguns enveredem pela política, de modo a trazer ideias novas a um sistema antigo e a criar o efeito de substituição que tanto desejamos na política nacional. Desejaríamos também que estes fossem pessoas mais capazes, impolutas e competentes do que as que hoje compõem o leque de responsáveis a que relegamos um papel importante na nossa sociedade e seu desenvolvimento. Ora, como qualquer bom trabalhador, estas pessoas procurarão (e terão mais provavelmente quem lhes ofereça) um bom trabalho, em que se sintam realizadas, não manchem o seu nome e vejam a sua recompensa. Ora, serem crucificados à partida apenas por pertencer à classe política, não parece ser o mais cativante para tais indivíduos. Não sentir que por melhor que façam terão qualquer reação diferente pelo grande público, ao qual vão ser expostos diariamente,também não parece motivador. Mas é o que acontece. Qualquer frase, medida ou proposta de qualquer quadrante merecerá por parte de muitos portugueses a mesma desconfiança e crítica desinformada.

A verdade é que também ninguém irá enganado para tais funções e deve estar sujeito a esse escrutínio, que deve mesmo ser duro dadas as características, quer haja crise quer esteja tudo bem.Contudo, pertencer à política não pode de maneira nenhuma ser cadastro. Deve existir mais rigor em analisar o desempenho de cada um, não ceder a críticas fáceis e muito menos a fake news. Valorizar o cargo político, assim como valorizar qualquer posto de trabalho, é mais eficaz do que desvalorizá-lo quando procuramos quem nos sirva bem.

O ambiente irrespirável que se cria na política leva ainda a uma desumanização dos seus intervenientes. Na passada segunda-feira vimos o Secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales emocionado com o facto de não terem existido mortes de COVID-19 nesse dia. Importa destacar esta emoção, de forma a não esquecer que “do outro lado” (que devia ser o mesmo) estão também pessoas, que nem todas serão dotadas de vis intenções contra nós, mas que tentam numa sociedade e num sistema tão complicado como sabemos, fazer o que podem, com erros claro, para fazer jus ao cargo que têm e muitas vezes sobre a pressão de lidar com vidas e mortes, como neste caso. Se compreendermos e relembrarmos que estamos de facto a falar de pessoas, humanos, talvez consigamos direcionar e ser mais eficazes e justos nas nossas críticas.

A impunidade pela indistinção

Este problema é de simples explicação. Quando criticamos todos por igual, os piores saem beneficiados – existe uma normalização dos seus comportamentos. Talvez pelas acusações voarem e passarem para todos os lados vemos uma repercussão de erros e pessoas do passado ainda hoje passeando pela política nacional. Aliada a isto está a descredibilização da opinião pública. Cada vez mais vemos uma classe política mais afastada do “português comum” ou do “país real” e que vê a opinião pública como algo que tem de aguentar e não algo que tem de ouvir. E esta responsabilidade cabe aos dois lados, uma vez que se temos de nos fazer ouvir, o bom senso ajudará mais do que o simplismo para que tal aconteça.

O surgimento de algo verdadeiramente diferente

A generalização negativa de tudo o que existe na política leva muitos portugueses a ansiar por algo diferente,muitas vezes individualizando esse mesmo desejo em alguém que chegue, “dê um murro na mesa” e mude finalmente tudo. Mais uma vez, consiste em procurar uma solução demasiado simples para um problema complexo e que como tal não vai acontecer. As mudanças são graduais e quanto mais pessoas envolvidas nelas melhor estaremos.

Isto não significa que não vão aparecer pessoas diferentes. Elas irão, e captarão por isso facilmente as atenções. Contudo, esta diferença apesar de se mascarar de salvadora será revestida na realidade por toda a crítica e solução simplista e por uma escassez de soluções. E especialmente será revestida pelo oportunismo, falta à verdade e populismo com que estranhamente parecemos concordar quando multiplicados diversas vezes, embora os caracterizemos como o que de pior têm todos os que esta nova vaga pretende substituir.

O surgimento de algo verdadeiramente diferente acontece, mas não nos deixemos enganar por essa diferença, que difere sobretudo daquilo a que devemos tentar compreender melhor, a democracia, para não a perder.

Todos temos responsabilidade

Penso que os problemas aqui expressos são suficientes para que percebamos que em democracia, todos temos responsabilidade. O voto não é o único momento em que podemos usar o nosso poder democrático e este não fica entregue para sempre aos nossos representantes. Este poder parece estar em Portugal ainda perdido, à espera de nascer numa democracia mais rica, em que os cidadãos procurem mais rigor e informação neles próprios, incluindo na sua crítica, conscientes de que essa mudança longa, difícil mas necessária, trará a transformação que hoje procuram em soluções simplistas, destinadas ao falhanço e ao retrocesso.

Por mais que por vezes pareça que tudo nos dá a razão de espalharmos por todos igualmente a nossa revolta, por vermos erros, más intenções e aproveitamento em toda a parte, devemos resistir e procurar também nós, pela nossa voz na sociedade, não ser todos iguais.  

Imagem: EAS

João Nunes

Estudante da licenciatura de economia do ISCTE-IUL. Membro fundador do Falatório.

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