Bruno Candé, português de descendência guineense, ator de 39 anos e pai de 3 filhos, foi assassinado neste último sábado às 13 horas, em plena Avenida de Moscavide. Várias testemunhas contam que a vítima já teria sido alvo de vários insultos racistas e que o autor, um homem de 80 anos, seguiu impávido e sereno, e numa total frieza após os 4 disparos mortais. Como se o choque e revolta pelo hediondo crime não fossem suficientes, a eles se juntam a tristeza e desilusão quando vemos a mesma frieza por parte dos que, por detrás dos seus ecrãs e teclados, se afastam cada vez mais da empatia, negando o racismo e pondo os pecados na vítima ao invés de no agressor.
Um caso de racismo
Muito se tem especulado sobre as verdadeiras motivações do homicida. Esse não é o objetivo deste texto, deixemos esse trabalho para a Polícia Judiciária cuja competência é essa mesmo, a de descortinar os contornos judiciais do caso. Não nos cabe a nós ficar, quais adeptos fervorosos de um clube durante uma análise do “VAR”, esperando nervosos pelo resultado de averiguações policiais desejosos de poder festejar o resultado que mais nos convém. A vítima e a sua família não merecem ser massacrados com essa politização a cada instante, que fomenta ainda mais a discórdia e a divisão, num caso que apenas devia motivar a nossa revolta e solidariedade conjunta.
Mais, essa decisão, neste caso em especial, em nada altera os contornos racistas em que este se desenvolveu. Será impossível averiguar se o assassinado assim o seja “só porque era preto”. Mas não é impossível saber se o assassino era racista. Obviamente, era. Senão vejamos as frases que dirigiu a Bruno Candé nos seus últimos dias: “Preto, vai para a tua terra!” “Volta para a sanzala!” “Tenho armas do Ultramar em casa e vou-te matar”. Se o ódio racial não foi a única razão para este homem matar outro, foi certamente um facilitador para que isso acontecesse, como fica claro pela ameaça e ódio racial dirigidos àquela que iria ser a sua vítima dias depois.
O ódio motiva a raiva, motiva a violência. Onde o ódio racial existe, a violência está mais próxima. Por isso mesmo, este caso é indiscutivelmente, um caso de racismo. Quer seja ele o motivo ou o facilitador desta violência, está ligado a ela.
Vamos continuar a dizer que não há racismo?
O tema do racismo esteve na boca de praticamente todos os deputados ou líderes partidários aquando das manifestações antirracistas realizadas em Portugal o mês passado. Por exemplo, Rui Rio afirmou que não via racismo na sociedade portuguesa e André Ventura organizou uma manifestação para dizer isso mesmo. Ora, isto só nos pode levar a questionar o quão alheados da realidade podem estar estes representantes do povo, não apenas por este caso, mas porque não seria certamente este homem de 80 anos o único racista deste país. Porque fica claro o quão normal é em Portugal ouvir frases de ódio como as que foram dirigidas a Bruno Candé, tanto que para as testemunhas não era, nem foi, surpreendente ouvi-las.
No entanto, nada parece desmobilizar aqueles convencidos de que o racismo é uma invenção num Portugal que surpreendentemente e contra quase todas as estatísticas e estudos será para eles um antro de igualdade racial no Mundo. Mesmo num caso onde um homem mata outro após, e cito uma testemunha, dizer “que ele era preto, que ele tinha que estar na sanzala, que ele ia violar a mãe dele”, André Ventura não vê “um pingo de racismo”.
Quando negamos um problema, estamos a fazer tudo para que ele não acabe. É um sinal negativo e que deve ser encarado com seriedade que cada vez mais uma porção da população (segundo indicam sondagens recentes) se identifique com quem tem esta posição impeditiva de se lutar pela justiça e pela igualdade.
“Pena de morte das vítimas já assassinadas”
A frase é de Paula Lebre, mãe de Beatriz Lebre, jovem assassinada este ano e expressa bem um roteiro clássico destes casos, em que se parece querer justificar o crime encontrando e espalhando os pecados (muitos deles inventados ou imaginados) da vítima. Esta pena capital é aplicada já depois dos corpos estarem estendidos, na mente de muitos que preferem a defesa egoísta de uma visão sua, do que a empatia pelador dos outros, e que não olham a meios para o fazer. Ventura é um artista de renome em roteiros destes e, apresenta, sem um fundamento que se preze, mais uma das suas peças, destacando um testemunho não confirmado (e contrário a tantos outros) para justificar a narrativa conveniente.
Estes procedimentos não são únicos do deputado do Chega (apesar de a este, como representante da nação, se exigir bem mais responsabilidade), repercutindo-se pelas redes sociais e outras conversas onde se pode aliás observar, fácil e abertamente, o racismo que ainda negam existir aliado à culpabilização das vítimas (normalmente apoiada por frases como: “ele não era nenhum santo”) e whataboutism desmedido – a existência de outros e diferentes casos não justifica a falta de empatia ou a discussão deste, tal argumento só impossibilitaria qualquer discussão racional de qualquer tema, e talvez por isso seja tão utilizado.
Negar é esquecer
Ontem o nome foi George Floyd, hoje é Bruno Candé. Negar o racismo é esquecer estes nomes, é passar-lhes uma borracha por cima como se nunca tivessem existido, como se nunca tivessem morrido como morreram, como se eles e as famílias não importassem. É negar também a empatia e os valores de uma sociedade solidária e igualitária.
Ontem foi em Minneapolis, hoje em Moscavide. O Atlântico separa muita coisa e altera a sua dimensão, mas não faz desaparecer magicamente o racismo ou o ódio. Compreender e combater o racismo é não esquecer Bruno Candé, não esquecer a sua família, tentando que as gerações seguintes não passem pelo mesmo que as anteriores, em conformidade com o que Martin Luther King e tantos outros sonharam. E chegámos mais perto! Com o tempo chegámos um pouco mais perto de eliminar os problemas. Não podemos agora, por nada, dar este passo atrás quando ainda temos tantos à nossa frente no caminho para uma sociedade mais justa.
Imagem: SOL