Os "Stakeholders" do Senhor Reitor

Jul 15, 2020
Crónicas

Na economia, assim como em outras ciências com uma vertente sobretudo social, a fronteira entre a opinião e a divulgação científica não é, de todo, nítida e de fácil identificação. Será portanto de estranhar que numa reunião por parte da direção da NOVA SBE, faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, se tenha defendido (embora não tenha sido decidido formalmente) que os docentes da faculdade não deveriam assinar artigos de opinião com o nome da faculdade, apenas os científicos.

A estranheza começará a dissipar-se quando percebemos que a cronista do Público e professora de Economia da NOVA SBE, Susana Peralta, foi uma das principais visadas na reunião após ter criticado nas suas crónicas alguns dos mecenas desta universidade, como o Novo Banco ou a EDP. Dissipar-se-á ainda mais quando ao longo desta crónica percebermos como alguns dos interesses instalados e modo de funcionamento desta instituição pública fazem temer uma problemática mercantilização do ensino superior.

O uso do nome da faculdade

Como qualquer instituição, seja ela de ensino ou não, a NOVA tem o direito de analisar e decidir sobre o seu modelo de comunicação, procurando proteger o seu nome e prestígio, embora sempre salvaguardando a liberdade de expressão dos seus membros, algo que refere Daniel Traça, diretor desta faculdade que acrescenta ainda que a censura “não existe nem existirá”, afirmação que não posso deixar de saudar.

Assim, será motivo de preocupação verificar que existe por parte do Conselho de Catedráticos da faculdade a intenção de privar alguém de usar o seu posto como professor desta universidade para credibilizar o seu espaço de comentário livre, problema nunca levantado quando em 2018 um professor da Nova usou o seu posto e nome da universidade para participar num anúncio publicitário do BPI, outro “stakeholder” privado desta faculdade.

Será, portanto, mais problemático para parte de órgãos de gestão desta universidade pública que uma professora da faculdade se intitule como tal para escrever numa coluna de jornal uma visão independente sobre atores económicos do que um professor que o faça ao serviço destes.

A promiscuidade

As acusações de promiscuidade em relação aos interesses privados nesta faculdade não ficam por aqui. Aliás, recentemente vários órgãos de comunicação fizeram saber que Daniel Traça, o diretor que referi acima, que está em regime de exclusividade na direção da NOVA, tem também um papel de administrador no Banco Santander, do qual recebe quase o dobro do que recebe pela universidade segundo o DN, o que foi aceite pelo reitor da universidade.

Um outro caso surgiu o ano passado, quando 2 professores da NOVA fizeram um estudo encomendado pela EDP que serviu para o objetivo de defesa judicial dessa empresa justificando que não existiriam rendas excessivas, estudo esse que foi visto como tendo pouca legitimidade e independência, o que levou a uma investigação por parte do Ministério Público.

Estes casos levantados levaram a NOVA e nomeadamente o seu reitor a considerar a possibilidade da existência de conflitos de interesse e à promessa da criação de uma comissão independente que se debruce sobre isso mesmo, que até agora, ao contrário dos casos que pretende verificar, nunca existiu.

A mercantilização do ensino

A recente polémica com a qual iniciei este texto é o melhor exemplo para que se perceba como nas escolas de economia e gestão, com o seu expoente máximo na NOVA SBE, o próprio conteúdo e ensino está subjugado às forças de mercado. A tendência é para que se crie uma única corrente de pensamento económico mainstream, chamando-lhe científico, e subjugar todo o restante leque de visões heterodoxas como sendo ideologia e opinião, que não têm lugar nas instituições de ensino. A pressão limitadora de liberdade de expressão que este caso destacou é até mais do que isso, um exemplo de limitação de liberdade académica.

Ora, além de empobrecer a visão dos seus alunos, este status-quo reforça uma agenda que é favorável àqueles que são os financiadores privados destas universidades e que, como vemos pelos casos anteriormente referidos, não se ficam por esse papel passivo, estando muitas vezes de braço dado com a sua direção.

As universidades de economia e gestão, incluindo aquela de que faço parte, passam a agir como empresas, procurando dinamizar a sua marca, publicitá-la e estar dentro dos padrões definidos pelo mercado ao mesmo tempo que satisfazem os seus financiadores. Esquecem-se, no entanto, que os principais “stakeholders” da sua instituição são os alunos e que a sua principal função será formá-los com uma visão completa e rigorosa da disciplina em questão.

Falo com alguma experiência empírica neste sentido quando digo que os alunos, especialmente os mais interessados na disciplina (neste caso economia) não estão contentes com a forma e o conteúdo da sua formação e comunicam por diversas vezes essa sua perceção. No entanto, as instituições das quais fazem parte perdem muito menos tempo com isso, apesar da boa vontade de muitos dos seus docentes, do que com a publicidade da marca e vangloriação com a subida nos rankings internacionais. Esta perceção não é aliás, uma ideia peregrina de alguns alunos. Muitos empregadores têm revelado que os recém-licenciados na área de economia e gestão apresentam hoje um menor espírito e capacidade crítica do que em décadas anteriores, o que considero fruto de uma uniformização da visão que lhes é apresentada.

Que estas situações aconteçam em universidades públicas, sendo o Estado responsável pelo garante da liberdade académica e tendo o objetivo de formar o melhor possível as novas gerações não é admissível, não o devendo ser também para os reitores, que não podem perder o foco de quem são os seus “stakeholders” e do papel que a instituição que representam tem na sociedade presente e futura.

Já muito foi capturado pelos interesses do mercado, mas não deixemos que o conhecimento também o seja.

Imagem: Cascais.pt

João Nunes

Estudante da licenciatura de economia do ISCTE-IUL. Membro fundador do Falatório.

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