No mesmo dia, 21 de julho, foram apresentados na Europa o acordo sobre o Quadro Financeiro Plurianual (2021-2027) e o Fundo de Recuperação da União Europeia e em Portugal o plano estratégico para a próxima década encomendado pelo Governo a António Costa Silva. Estamos hoje a decidir sobre uma década importantíssima para Portugal e para a Europa e esta luta não depende apenas do tamanho da arma que nos dão.
Um importante acordo
A negociação expressou as diferenças nas visões para a Europa entre os próprios Estados-membros, com uma oposição clara dos países do bloco dos “frugais” (Holanda, Áustria, Dinamarca, Suécia e apoiados pela Finlândia) à proposta do eixo franco-alemão defendida também pelos restantes países na sua generalidade e aplaudida pelos países do Sul europeu. Em causa estavam a mutualização da dívida e o montante de transferências diretas, a fundo perdido,que com a discordância dos países “frugais” obrigaram a 5 dias e 4 noites de árdua negociação
No entanto, o acordo final acabou mesmo por ser atingido, consistindo num orçamento comunitário de cerca de 1 bilião de euros para os próximos 7 anos e um plano de recuperação de 750 mil milhões, que se divide em subvenções (390mil milhões) e empréstimos (360 mil milhões). A dívida será emitida diretamente pela união e existirão aumentos nos rebates, isto é, descontos nas contribuições comunitárias, para os países do grupo frugal. Questões como a relação do Estado de Direito com os fundos europeus não foram abordadas, nem se espera que sejam durante a presidência alemã do Conselho (a próxima será portuguesa, que herdará estes problemas). Negativamente, vemos ainda neste acordo uma redução dos fundos destinados a programas europeus como a “Europa Digital” e o “Fundo de Transição Justa”.
Que conclusões retirar deste acordo? Ora, a primeira é que aconteceu. Será porventura, a mais importante apesar da sua aparente redundância. Num período de crise e com uma União com cada vez mais divisões internas, este acordo permite pelo menos mais 7 anos de um plano conjunto europeu e uma recuperação económica feita dentro do projeto da União. Os acordos europeus não são famosos pela sua celeridade e o facto deste ter sido alcançado ainda em julho não pode deixar de nos aliviar do medo de arrastamento deste processo,quando vivemos numa situação em que o tempo carrega consigo o peso da destruição económica, da falência de empresas e da privação material das famílias.
A dívida emitida conjuntamente e um Orçamento mais robusto serão, para um europeísta como eu, motivos para algum otimismo, uma vez que abrem portas a uma UE de recursos próprios e que age como um todo, processo que poderá e, considero, deverá ser aprofundado de forma a evitar a fragmentação e a heterogeneidade quer das consequências da crise, quer do aproveitamento do Mercado e Moeda Únicos. Outro motivo de otimismo está na liderança franco-alemã ao lado da solidariedade e coesão europeias percebendo bem que o desenvolvimento económico e social da Europa unida terá sempre de passar por aí, apesar da oposição e cedências agora feitas a outros interesses.
Falamos portanto de um acordo importante e de cujo sucesso viverá a própria união e dessa responsabilidade não se podem alhear os Estados-membros,incluindo, claro está, Portugal. Nas palavras da presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, “Ninguém deve tomar a União Europeia como garantida”.
O que chega a Portugal
Depois de muita especulação sobre se chegaria a Portugal uma “bazuca” ou uma “fisga” de fundos europeus, a decisão alcançada não veio trazer a resposta. Como em qualquer negociação, a arma obtida estará algures no meio das até agora profetizadas, e a sua análise dependerá, como vimos nas reações dos diversos partidos, do ângulo em que nos posicionamos.
Em termos concretos, caberá a Portugal um acréscimo de 37% em relação ao quadro de 2014-2020, o que representa 45 mil milhões de euros em transferências a fundo perdido (15 mil milhões) e subsídios (30 mil milhões). A este número acresce uma parte em empréstimos, que completará a soma de um total de quase 58 mil milhões, valor que fez o Presidente da Republica afirmar que “nunca Portugal recebeu tanto dinheiro” e passar as duas ideias principais que é necessário reter numa altura destas: a oportunidade e a responsabilidade.
O Governo passará a ter de aplicar um valor bastante superior de fundos europeus face àquele que até agora estava a seu encargo e os portugueses, cientes do histórico negativo do país face à sua utilização vão cobrar os seus resultados posteriormente, em contestação social ou em eleições. Esta não pode ser mais uma década perdida. Com um Governo a classificar este acordo como bom, terá agora de ser capaz de o mostrar aos portugueses.
Contudo, não devemos perder a noção de que o erro histórico do passado na utilização de fundos europeus consistiu sobretudo na sua não aplicação em projetos estratégicos e duradouros e serão esses que devemos exigir, para além de uma recuperação económica da crise que deve estar centrada naqueles que mais pagaram a anterior e mais estão a sofrer com esta.
O plano de António Costa Silva
Assim sendo, apraz-me verificar que existe uma preocupação por parte do governo da criação de um plano estratégico para a próxima década. Um plano, qualquer que seja, é por norma melhor que plano nenhum. Este, chamado “Visão Estratégica para o plano de recuperação económica e social de Portugal 2020-2030” e encomendado ao empresário António Costa Silva consiste em mais de 120 páginas que se dividem num projeto inicial de recuperação face à crise pandémica e numa identificação de pontos e medidas estratégicas para os próximos 10 anos.
Tendo uma visão geral do plano, poderia destacar alguns pontos onde apresento maior concordância, sejam eles, a título de exemplo, o destaque dado ao setor social, à transição energética, ao soft power ou à ciência da saúde bem como outros de menor concordância como as excessivas referências ao papel atlântico e poucas sobre a UE, de onde vem a maior parte do nosso comércio, bem como a própria capacidade de pôr em prática este mesmo plano.
No entanto, mais importante que isso é relevar a capacidade que este plano pode ter para trazer uma base e um ponto de início para a discussão pública da visão estratégica da próxima década portuguesa. Com muitos lugares-comuns e sem contabilização de qualquer tipo, este plano terá a maior parte do seu mérito no facto de possibilitar aos vários agentes políticos e económicos uma oportunidade de darem o seu contributo na visão de vários pontos cruciais que este plano engloba, desde as infraestruturas à justiça, da educação à saúde, do emprego à habitação, sempre com o Estado num papel ativo, um Estado investidor que assume as responsabilidades e promove o desenvolvimento.
Se o envelope financeiro vindo da Europa é uma arma e citando José Mário Branco, agora “tudo depende da bala e da pontaria”. A pontaria, essa, só virá afinada se a discussão pública também o for. Terá de ser feita sem “misticismos e ilusões”, “eficiente” e “fabricada com cuidado”. Os fundos europeus só serão uma arma se a luta, a luta por um país melhor, acompanhar. Assim esperamos.
Imagem: European Pressphoto Agency