O vandalismo da filosofia

Jun 30, 2020
Crónicas

Certamente que, a recente “caça” às estátuas não passou despercebida nas últimas semanas,como resultado da mundialização dos protestos contra o racismo que se iniciou nos Estados Unidos.

Naturalmente que, muitas das estátuas vandalizadas constituíam uma demonstração de glorificação a personagens que, apesar de terem marcado a história de uma nação, praticaram simultaneamente atos condenáveis e impensáveis, nomeadamente o esclavagismo. Assim sendo, e resultante de inúmeros de anos de discriminação,é compreensível a frustração de alguns, os ostracizados, face à glorificação destes símbolos de segregação, bem como, a vandalização da sua materialização.

No entanto, é premente a reflexão se será esta a forma mais adequada de protestar por esta indiscutível nobre causa. Não será racionalmente pouco coerente avaliar a validade do passado de acordo com a mentalidades presente? Emocionalmente,é compreensível.

Há que salientar que o Homem é um produto do seu tempo, não é um ser cujo intelecto seja autónomo da época em que existiu, assim como, do coletivo que o rodeia e influencia. É importante constatar que, logicamente, existe um processo de evolução ao longo do tempo e, por isso, há que respeitar e aceitar que, fruto deste desenvolvimento, ações praticadas no passado, não sejam presentemente aceites sem, contudo, branquear a história. Pois, é a nossa compreensão e estudo do passado, que nos permite avançar.  

Recorrendo a Descartes, este enuncia numa das suas teorias que, para que uma ação seja considerada como detentora de razão (constituindo assim uma verdade absoluta),teria de ser possível a sua generalização e universalização. Numa tentativa de responder à interrogação acima, tentarei testar esta hipótese.  

Sem um conhecimento superlativo da história, podemos facilmente identificar diversos tipos de discriminação que constituíram o passado do Homem, e que, hoje em dia podem ainda prevalecer (apesar de presentemente, serem maioritariamente atos condenáveis): racismo; esclavagismo; desigualdade de género, entre muitos outros tipos de discriminações e práticas inumanas. Questiono-me, quantas estátuas, livros e respetivas adaptações cinematográficas, documentos antigos,e outro tipo de património, teriam de ser destruídos para, e de acordo com o acima referido, universalizar a ação inicial de vandalizar a materialização destes “(não) valores”, que já deveriam ter sido ultrapassados? Desde as monumentais pirâmides egípcias (construídas na sua totalidade por trabalho escravo), às escrituras bíblicas, que contém diversas passagens com exemplos discriminatórios,até à necessidade de reformar o ensino, cujos programas letivos enaltecessem figuras que, no seu tempo, praticaram algum tipo de ação condenável no presente.A lista de destruição seria infindável. Claro que este cenário é hiperbólico e de extrema exacerbação contextual, unicamente para exemplificar e perseguir a hipótese colocada no parágrafo acima.

Pessoalmente,considero que as injustiças do presente, mesmo que perpetuadas do passado, não têm uma responsabilidade imputável às personagens de um tempo anterior que as praticaram, mas sim, nos que, no presente, se recusam ao avanço civilizacional do pensamento humano que perpassa ao longo desta reflexão. Assim, a luta contra estas causas (neste caso o racismo predominantemente) deve ser feita contra estes últimos.

 

Imagem: Saber e fazer artes

Catarina Marcão

Estudante da licenciatura de economia do ISCTE-IUL. Membra fundadora do Falatório.

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