O “jogo” do Desconfinamento

Jul 7, 2020
Crónicas

Após mês e meio de confinamento e mais de dois meses de desconfinamento, percebemos que a pandemia está a gerar um cenário híbrido, comparável a uma desafiante partida de xadrez, em que a estratégia de “trade off de peões” é substituída pela estratégia de trade off entre economia e saúde, e de um clássico jogo de “tirar e pôr” (restrições).

O Dilema do Desconfinamento

Por um lado o desconfinamento é supostamente sinónimo de um agravamento da pandemia, de um aumento de infetados e da mortalidade, e consequentemente uma maior fragilidade do sistema de saúde, pois, mesmo com o incremento dos cuidados e restrições, é dificilmente possível reduzir para zero a interação e contacto diário com outros.

Por outro lado, o confinamento é o caminho para uma nova crise económica. Como consequência das restrições colocadas em prática, foram muitas as empresas que interromperam a sua produção/atividade, os serviços que sofreram uma redução e os trabalhadores que viram os seus rendimentos diminuídos em parte ou mesmo na sua totalidade. Esta redução na atividade económica resultou numa queda do consumo, do investimento e da produção registada ao longo do primeiro semestre deste ano. Segundo uma estimativa da OCDE, Portugal é o 11º país (numa lista aproximadamente de 50) cujo PIB pode sofrer uma maior queda por cada mês de restrições. A redução estimada do PIB segundo esta organização é de 27% (do PIB).

No entanto, não existe apenas um trade off entre saúde e economia, uma vez que confinar para controlar a pandemia cria graves consequências para a economia, enquanto desconfinar pode criar graves consequências para a saúde (tem de existir, portanto, uma troca entre os dois) mas, a meu ver, também um trade off entre estado de saúde presente e estado de saúde futura.

Não desvalorizando a expressão recorrente "a saúde em primeiro lugar", com a qual muitos leitores devem concordar (eu inclusive), se recorrermos a um pensamento lógico, as consequências económicas do confinamento, que permite uma presente melhoria do estado de saúde, podem no futuro agravá-lo. Passo a explicar. Se durante o confinamento o produto do país cair drasticamente, como já referido no parágrafo anterior, a pobreza irá não só aumentar, como também agravar-se (o número de pobres irá aumentar e os já existentes vão ver a sua situação piorada). Como a população em situações fragilizadas (pobreza) tem, em geral, hábitos menos saudáveis e um menor acesso a cuidados de saúde, vemo-nos como parte de uma situação paradoxal: as medidas tomadas para uma melhoria das condições presentes vão, muito provavelmente, piorar a situação futura.

Esta situação constitui então, um dilema. Não seria, segundo o meu ponto de vista,moralmente aceitável "ignorar" o vírus atual e continuar as atividades económicas como se de nada relevante se tratasse, e sem proteger a população para esta nova ameaça (a Suécia está agora a sofrer as consequências desta decisão, sendo o quinto país cuja economia foi mais penalizada segundo a OCDE, e o sexto país europeu com maior taxa de mortalidade por Covid-19 até à data). Por outro lado, o confinamento de uma economia perante uma ameaça viral cujo desfecho (possível vacina) ainda se encontra bastante fora de alcance,parece-me também ingénuo e prejudicial.

Quando falamos de dilemas, as soluções são muitas vezes impossíveis de determinar de um ponto de vista analítico, sendo que, cada um, de acordo com os seus valores e consciência, iria sugerir uma “solução ótima” diferente. Tendo isto em conta,penso que a solução passa por uma avaliação cuidada da situação, tentando encontrar o equilíbrio entre estas duas opções (confinar e desconfinar), que passa, como temos visto ultimamente, por um jogo de “tirar e pôr” restrições por parte das autoridades competentes. Em que consistirá esse jogo?

A teoria dos Jogos

Recorrendo aos contributos da microeconomia, mais concretamente à teoria dos jogos, tentarei conceber um “jogo” que poderá explicar como é que este dilema pode ser resolvido ou está mesmo a ser resolvido pelo governo.

A título de curiosidade, a teoria dos jogos é geralmente utilizada por gestores para resolver questões de concorrência (decisões que beneficiam as suas empresas em detrimento das empresas concorrentes) de modo a garantirem uma posição de mercado mais favorável. Esta teoria é composta por três elementos principais:os jogadores, as estratégias e os resultados.

Aplicando agora esta temática à situação da pandemia, temos que o jogo vai procurar responder às seguintes questões: “Quando se deve confinar ou desconfinar?” e “Deve ou não acrescentar ou retirar-se restrições?”

Peço agora aos leitores que imaginem o seguinte jogo. Existem 2 jogadores, o ministério da saúde (MS), que, para simplificação deste modelo, vamos supor que o seu único interesse é melhorar as condições de saúde, e o ministério da economia (ME), com um pressuposto análogo. Cada um dos jogadores tem 3 estratégias/opções: colocar mais uma restrição em vigor, retirar uma restrição que esteja em vigor e manter a situação (nem colocar nem retirar). Este jogo é simultâneo, os jogadores decidem as suas estratégias ao mesmo tempo, e com repetição, o jogo é “jogado” mais que uma vez.

Seguindo o exemplo de que o MS decide colocar mais uma restrição e o ME decide retirar, o número de restrições ficará constante, mas foi ajustado para uma combinação de restrições diferente. O mesmo acontece no exemplo contrário, caso o MS decida retirar e o ME decida colocar. Se ambos decidirem retirar, estamos numa situação de desconfinamento, se ambos decidirem colocar (restrições) estamos perante uma situação mais próxima do confinamento. A situação ficaria constante se ambos decidissem não colocar nem por restrições.

Em cada jogo os dois ministérios decidem a sua estratégia. O jogo será jogado um número indeterminado de vezes, ajustando as medidas de restrição em cada “partida”. Nos intervalos de cada jogo, será avaliada a situação do país pelos dois jogadores, com o intuito de poderem decidir da melhor forma o jogoseguinte. O jogo (em si mesmo) termina quando já não houverem restrições em vigor e não haja intenção de nenhuma das partes (os ministérios da saúde e economia) para colocar mais restrições.

O enviesamento da realidade

Certamente que, se o objetivo for a aplicação direta deste modelo à atualidade, há que terem atenção que os pressupostos sugeridos são muitas vezes enviesados. Como parte integrante do governo, muitas vezes os ministérios não se cingem somente à sua área de especialização, mas também tentam manusear argumentos que não constituem a sua área de competência. Esta situação poderia então criar um outro nível de jogo, “um jogo (de influências governamentais) dentro do próprio jogo”.

Imagem: Manual do Homem Moderno

Catarina Marcão

Estudante da licenciatura de economia do ISCTE-IUL. Membra fundadora do Falatório.

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