Um “fenómeno” nascido nos Estados Unidos, três décadas para trás, dado à luz por uma direita minoritária na altura, mas que hoje dirige os destinos da maior potência do mundo Ocidental.
Repare-se que “fenómeno” está entre aspas no parágrafo anterior, porque o que aqui vamos tratar não é um movimento social, político,ou bem cultural de grande importância.
É sim, a utilização de duas palavras que servem de arma de arremesso da chamada ‘direita alternativa’, mas não chegam ao debate político português apenas por reverentes a Bolsonaro e Trump. Procurar esta expressão no léxico dos representantes da democracia lusa não nos levará apenas ao vocabulário do CHEGA de André Ventura, ou do PNR de José Pinto-Coelho. Também encontramos semelhante espantalho nos tweets de Nuno Melo ou em entrevistas de Francisco Rodrigues dos Santos, duas das grandes figuras do CDS-PP, um representante antigo da “direita tradicional” que habita o Parlamento há várias gerações.
Parece-me, a título pessoal, curioso, que vá entrando no discurso político corriqueiro uma teoria da conspiração cuja base é igualmente frágil à de qualquer movimento anti-vaxxer ou terraplanista. A conspiração do marxismo cultural consistirá na infiltração, por parte da Escola de Frankfurt, de valores culturais destinados a reverter a moral e os princípios-base das sociedades ocidentais, com vista a derrubar instituições como a Igreja e a família, e até o próprio capitalismo.
Ora, se há premissa que faria rir Marx, os cientistas sociais da Escola de Frankfurt, ou qualquer agente participativo da economia de mercado (e acontece que, em Portugal, somos mais de 10 milhões de agentes participativos), é a de que possa existir hoje – ou em qualquer época – um panorama cultural extensivo que se oponha diametralmente à ideologia política e económica dominante. A cultura é inseparável do campo político, económico e social. Como se pode apelidar de marxista um contexto cultural que vive de braços dados com um capitalismo cada vez mais forte e intenso na sua acentuação de desigualdades de distribuição de riqueza e do seu elemento central, o capital?
E que resposta pode ter quem afirma que o marxismo cultural não só existe como cultura dominante nas sociedades do Mundo ocidental, mas se serve também do politicamente correto como meio de censura, para obter um monopólio do panorama cultural e se impor forçosamente nos meios de comunicação? É concebível que uma doutrinação marxista a lápis azul possa ser compatível com a mercantilização crescente do trabalho e do ser humano, ou coma fusão implacável da cultura ocidental com o consumismo desenfreado? Haverá um ataque cultural cerrado à família, à Igreja, e aos valores conservadores em curso, mas traduzido na perpetuação de um sistema nepotista e que concede uma enorme fatia do poder económico (mas também cultural e social) a devotos e conservadores culturais? Como não ver a contradição?
Para quem se dedicar a separar o trigo e o joio, acaba por não ser difícil ver por onde passa a revolta de quem apregoa a decadência da humanidade às mãos do demoníaco marxismo cultural. Os direitos conquistados progressivamente ao longo das últimas décadas por minorias como a comunidade LGBT, os grupos étnicos não-maioritários, ou simplesmente pelas mulheres, são para alguns conservadores um caminho para a destruição dos valores ocidentais.Mas estas conquistas não estão, de forma alguma, ligadas ao socialismo de Marx.São sim uma consequência natural da evolução de mentalidades, que não põe deforma alguma em causa os valores ocidentais mais importantes: a liberdade e a democracia. Assim como não constitui um ataque aos valores mais conservadores,religiosos ou familiares: se os autodenominados defensores destes valores decidem pôr de parte certos indivíduos pela etnia, orientação sexual ou género,é do seu lado que está a incompatibilidade e tentativa de subversão dos que discriminam.
Incompatibilidade essa que não é, aliás, passada a lápis azul pelos mecanismos de poder, como se dá a entender pelo repetir barulhento da também famosa expressão “politicamente correto” em toda e qualquer situação.Ideias retrógradas são, sim, recebidas com contraditório por parte de uma maioria da sociedade que já as ultrapassou. Mas apenas o ódio e a injúria são,de facto, criminalizados
É certo que sabe melhor à consciência sentir que lutamos contra uma máquina que nos quer destruir, do que nos confrontarmos com os nossos próprios valores e o porquê de estes perderem força ao longo do tempo.Mas se há máquina que subjugue o nosso pensamento nos dias que correm,certamente não será uma máquina marxista.
O que os impulsionadores do espantalho do marxismo cultural pretendem fazer passar como um ataque feroz e sincronizado a larga escala aos seus valores, que lhes faz fugir o Mundo de baixo dos pés, não é mais do que o (lento e inacabado, atenção) deixar para trás de valores e conceções antigas comum a todas as gerações da história da Humanidade. E a associação da cultura mainstream ao marxismo, numa sociedade que a cada dia se divide mais por classes e menos por grupos identitários, é, no mínimo, risível.