Foi no pós-25 de abril que se popularizou a famosa expressão dos três F, lema de um povo alienado e submisso que até aí acatara, na sua grande maioria, a mão firme da ditadura salazarista sobre o país, entretido e pacificado pela religião, pelo fado, e pelo futebol.
Várias décadas volvidas, apenas um dos três F’s não perdeu a sua influência e peso massivos na sociedade portuguesa. Pelo contrário, com a evolução das tecnologias de informação e comunicação, o futebol entra hoje sem bater à porta na casa de todos ou quase todos os portugueses. Os indiferentes ao desporto-rei são uma ínfima fração do nosso povo e mesmo entre quem não veja futebol, poucos negam, pelo menos, uma preferência clubística.
Infelizmente, o peso do futebol português nas nossas mentes, com os fanatismos e irracionalidades que traz um desporto de emoções, serve não só de distração em relação a questões bem mais importantes, como também de manto de impunidade para muitos dos que nele se movem.
Não é segredo para ninguém que a justiça portuguesa tem critérios de tolerância diferentes para ricos e menos ricos, para influentes e menos influentes. Os escândalos que têm brotado na banca e em cargos importantes do Estado Português são um bom exemplo, uma vez que muito raramente acabam em condenações coerentes com a gravidade dos atos praticados (quando essas existem).
Mas quando chegamos ao futebol e a tudo o que acontece no seu backstage, a impunidade perante a justiça dos seus atores é acompanhada pela indiferença total da opinião pública! Se a verdade é que o povo português não é famoso pela sua mobilização contra a injustiça, quando se misturam assuntos de paixão e coração como o futebol na equação, chegamos a uma total inércia.
Se focarmos a análise nos três maiores clubes portugueses, cujas raízes e ramificações na sociedade são intermináveis, não nos é difícil ver os seus atores ligados a inúmeros casos de corrupção, tráfico de influências, branqueamento de capitais e fraude. Só na última meia dúzia de anos podemos apontar todo um rol de nomes pomposos: Cashball, Operação Mala Ciao, Saco Azul, Operação Lex, emails, e-toupeira. As consequências para quem está ligado diretamente aos clubes são sempre nulas. Se alargássemos a busca às últimas décadas não teríamos problema em encontrar centenas de processos, invariavelmente varridos para baixo do tapete ou castigados com penas absurdas. Entre eles seria destaque o caso Apito Dourado, que culminou com consequências inócuas para o então (e atual) presidente do FC Porto, cujas confissões a vários crimes de corrupção desportiva, suborno e proxenetismo estão espalhadas pela internet fora depois de terem sido captadas por escutas telefónicas.
Mas, para a opinião pública, todo este cenário de crime e (pouco) castigo é apenas parte do folclore do futebol, uma espécie de extensão do mesmo fora das 4 linhas. Para o cidadão (e logo, adepto) comum, o lodo pelo qual se movem os dirigentes dos seus clubes é totalmente irrelevante caso haja sucesso desportivo. O lodo pelo qual se movem os dirigentes dos rivais é apenas uma arma de arremesso para conversas de café. As rivalidades polarizam de tal forma qualquer assunto relacionado com futebol que é comum ver defesas acérrimas do indefensável quando as cores são as de quem comenta.
Somando esta mentalidade à promiscuidade entre os atores do futebol e a Justiça, seja por interesses económicos ou, mais uma vez, mero fanatismo clubístico, o resultado é um desporto-rei minado por todo o tipo de vigarices e esquemas, transformado num escudo à prova de bala para criminosos. Quem não se lembra do destino do ilustre ex-presidente do SL Benfica, João Vale e Azevedo, que se viu de algemas nos pulsos e envolvido em vários processos judiciais, detenções e penas de prisão quase de imediato após ter abandonado os quadros do clube? Não há melhor prova do quão incómodo é para políticos e funcionários da Justiça interferir com o ópio do povo. É, aliás, uma estratégia comum para os nossos representantes aparecer em tribunas presenciais de grandes Estádios portugueses de forma a associar a sua imagem aos símbolos dos “Três Grandes” e à sua popularidade. Popularidade, essa, da qual não partilham os políticos que não compactuam com este estatuto que tem o futebol português perante a justiça (a antiga eurodeputada Ana Gomes é um bom exemplo).
Mesmo fugindo ao campo da Justiça, e por muito importante que possa ser o futebol para a Economia portuguesa, acaba por ser inacreditável a subserviência demonstrada em algumas ocasiões, sendo que vou concluir destacando um exemplo “tsunâmico” que quase não levantou ondas: como se pode aceitar, depois de tudo o que passaram os lesados do BES, que o Novo Banco (detido em 25% pelo Estado português e alvo recentemente de uma injeção massiva de dinheiro público) tenha decidido, em 2019, fazer um perdão de dívida no valor de 94 milhões de euros a um clube de futebol, que se encontrava em dificuldades financeiras apenas e só devido à má gestão do mesmo? Qual é, afinal, a ordem de prioridades de quem detém o poder político e financeiro em Portugal? E quando chega a revolução à cabeça dos portugueses?
Imagem: Lusa