O termo dēmokratía surge na Grécia Antiga, mais concretamente na cidade-estado de Atenas, para descrever um recém-nascido sistema político, um “governo do povo”, por oposição ao “governo dos melhores”, ou da elite, numa aristocracia. Não admira, portanto, que tantos personagens políticos gostem de ser fotografados em frente ao Pártenon, na Acrópole de Atenas, desde Barack Obama a Putin, Bill Clinton, Jackie Kennedy e tantos outros que procuram associar a sua imagem ao ideal democrático.
No entanto, todos reconhecerão, hoje, num patamar de superioridade trazido por mais de 2 mil anos de evolução histórica e política, que a democracia ateniense tinha graves falhas e representava apenas um espectro reduzido (cerca de 10-20%) da sua população, restringindo o voto apenas a homens nativos e livres, numa sociedade com escravos, estrangeiros e claro, mulheres sem qualquer voz. O que provavelmente passará menos pela ideia, e sobretudo, pela ação de muitos políticos será o que a sociedade atual e eles próprios fazem com essa herança fantástica que os atenienses nos deixaram e qual a que deixarão para as gerações futuras que virem as suas figuras imortalizadas em frente aos símbolos do regime do “governo do povo”.
Em Portugal, assim como em grande parte do mundo Ocidental, a democracia foi felizmente o regime escolhido, muitas vezes exigindo difíceis lutas para a sua conquista. A problemática que hoje aqui trago é a da sua crise e como esta se parece estar a repercutir nas mais novas gerações de cidadãos nacionais, abrindo um espaço perigoso quer para a detioração dos processos democráticos quer para a ascensão de movimentos e partidos que apelam ao descontentamento gerado levando a retrocessos civilizacionais, algo que não é novo na história europeia.
Crise de representatividade
Começamos pelo fator que é de mais fácil identificação, ou não fosse este falado ostensivamente por todos os políticos de 4 em 4 anos quando surgem em todos os telejornais os números daqueles que prescindem do direito de voto, abstendo-se de o fazer. Em eleições legislativas, a percentagem de abstencionistas vai numa expansão que gostaríamos de ver no PIB ou nos salários: na casa dos 30% nos anos 90, nos 40% desde 2009 e ultrapassando os 50 % nas últimas eleições. Curiosamente, depois de todos ouvirmos os discursos pré-eleitorais com pertinentes reflexões em defesa do direito e dever cívico dos eleitores, e pós-eleitorais onde o foco vai para o que de negativo representa a abstenção, pouco ou nada ouvimos e vemos feito nos interregnos dessas eleições para minorar este problema, talvez pelos nossos representantes olharem para os seus representados na forma como veem o seu mandato – como interregno entre eleições.
Nas últimas eleições francesas ouviu-se que “os franceses sentem que ganham mais nas manifestações do que nas urnas”, nos EUA realizaram-se estudos que comprovam que a correlação entre a maioria da população gostar de uma medida e esta ser aprovada é muitíssimo reduzida. Em Portugal, ouve-se que “são todos iguais”. As pessoas não sentem que o seu voto irá significar uma contribuição para a forma como é gerida a sociedade em que se inserem.
Contudo, a crise de representação ultrapassa e aliás complementa a abstenção de várias formas. Um sistema político que represente uma parte da população irá decidir e agir sobretudo, em função desta e não de toda. Assumindo já os 50% que não vota alheado da decisão, arrisco dizer que muitos dos outros 50 não terão um papel assim tão diferente. Por diversas questões, uma delas a situação demográfica nacional que consiste numa concentração de eleitorado no litoral e centros urbanos, o que, apesar do esforço benéfico da existência de diferentes círculos eleitorais, não elimina um sentimento de falta de voz daqueles que vivem em regiões que garantem menos votos, sentimento esse mais que justificável e quiçá justificado pelas circunstâncias em que se encontram tais regiões.
Os partidos, pilares do nosso regime, são apesar de tudo máquinas que vivem em grande parte da sua posição cimentada na sociedade, bem como da sua capacidade eleitoralista, onde as campanhas têm um grande efeito. As campanhas servem portanto como umas primárias das reais eleições, isto é, quem garantir mais apoios que criem uma campanha mais eficiente partirá com uma vantagem para as urnas, que embora passe despercebida, existe. Não é por acaso que os grandes partidos tendem a manter essa sua posição e os pequenos tanta dificuldade têm em aparecer. E quem são os maiores financiadores dos partidos? Segundo uma recolha do Observador, são sobretudo famílias de grandes empresários como a família Mota (da Mota-Engil) e a Champalimaud que contribuem para vários partidos na mesma eleição, sobretudo PS, PSD e CDS. Curiosamente (ou não), são estes os 3 partidos que mais vezes estiveram no Governo. Um político americano, Boss Tweed, disse certa vez: “I don´t care who does the electing, so long as I get to do the nominating”. Eu não poria a situação portuguesa em termos tão fortes, mas também não ignoraria o facto dos interesses instalados poderem ter, de facto, uma representação superior e muito mais direta do que o voto dos portugueses.
O desinteresse dos jovens
Ter um regime democrático com falhas, mas que não deixa de ser democrático poderiam ser condições para dar o primeiro passo para a sua melhoria. Com uma classe política bastante envelhecida, importa olhar para as gerações mais jovens e para como a sociedade as forma de modo a procurar perceber as perspetivas presente e futura da nossa democracia.
Um estudo realizado pela ICS revelou em 2017 que um em cada cinco jovens entre 15 e 24 anos não tem opinião sobre o funcionamento da democracia portuguesa e que a alienação da política é crescente neste grupo. Eu, como membro desta faixa etária, em nada me surpreendo com semelhante estudo, uma vez que observo isso mesmo na realidade, destacando ainda o facto de que à medida que avanço no meu percurso académico, frequentando hoje a universidade, não vejo alteração neste paradigma de desinteresse e falta de opinião. Porém, observo também que os jovens não estão desinteressados face àquilo que acontece na sociedade e o seu papel nesta. Não estão alheados de causas como a ambiental, a anti-racista ou a luta por diversos direitos. Mas não veem na política, nos políticos, no sistema e na própria democracia algo que os represente e onde sintam que façam a diferença.
Ora, isto revela uma educação ineficaz na preparação para a vida pública, que mais uma vez encontrei de forma empírica. Isto porque esta deveria ser a primeira de todas as lutas: a luta por um sistema que os represente. Esta mudança traria tão mais facilmente a capacidade de promover a sociedade em que acreditam, e todos os seus valores. A escola está, quanto a mim, em enorme falha neste aspeto, formando cada vez mais atores públicos desinformados e desinteressados, não porque seja uma geração nascida com estas características, que não o é, ingressando em diversas lutas e parilhando crenças sociais, mas porque não está a ser preparada para ser a mudança política necessária.
Se existem jovens desinteressados, os muito interessados não têm melhor sorte. Sabemos que os partidos políticos são fundamentais na institucionalização da democracia. Os cidadãos podem encontrar neles um agrupamento de ideias próximas, possibilitando uma organização de informação que evita uma tal dispersão que impossibilite a realização prática do sistema. Quem se queira filiar num partido encontra com facilidade folhas de ingresso prontamente disponibilizadas. Porém, informação sobre como realmente participar parece estar remetida para um frio “esteja atento às nossas iniciativas”. Ora, quem não tem conhecimento do sistema terá muito maior dificuldade em ingressar e ser participativo nos partidos, nos quais subsiste uma cultura de reprodução, seja por família ou outro tipo de proximidade e contacto, onde a burocracia afasta o cidadão em vez de o procurar.
Atenienses ou Espartanos?
O caro leitor certamente se terá vindo a questionar neste texto: “ então e os espartanos? Só falou de atenienses”. Pois bem, Esparta era uma cidade-estado rival de Atenas na região da Grécia Antiga. Em Atenas, a razão, cultura e conhecimento eram os valores essenciais. Já em Esparta, eram-nos a força e a capacidade militar. O seu regime não era democrata, era sim aristocrata sob forma de uma diarquia (dois reis) e desde os 7 anos, os jovens eram formados na arte da guerra, para a qual toda a sociedade estava orientada. Hoje em dia, a sociedade não está felizmente orientada para a guerra. Mas, ainda assim, forma desde os 6 anos os seus jovens para um outro tipo de guerra, para o seu papel produtivo, como uma engrenagem numa grande máquina, para a qual toda a sociedade está orientada. Tal como em Esparta, não aprendem o seu papel na vida pública e veem a liderança da sociedade como algo distante e elitista.
Assim, e tendo em conta os pontos até aqui referidos, concluo também eu com uma questão para o caro leitor: Se queremos uma democracia ateniense, onde a razão, cultura e conhecimento estejam no centro, porque é que estamos a formar espartanos?
Imagem: Politisonline