A fuga ao bom senso

Jun 24, 2020
Crónicas

A fuga ao bom senso

(Ou o debate público do século XXI)

Na tarde da última quinta-feira quem passasse no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, iria encontrar a estátua do Padre António Vieira com pichagens a vermelho e a palavra de ordem "Descoloniza" dessa mesma cor. O ato de vandalismo foi prontamente condenado pela câmara que rapidamente procedeu à limpeza da estátua. Os mais variados e válidos comentários já foram feitos sobre este ato, a história e os movimentos sociais atuais. Contudo,importa hoje debruçarmo-nos sobre como foi feito o que, por melhor que fosse a equipa de restauro, não seria (e ainda bem) possível limpar nem apagar: o debate público nascido desta questão, que é em tudo portador de aspetos semelhante a inúmeros outros e portanto serve na perfeição o meu propósito exemplificativo. Com concordância mais ou menos unânime a nível de responsaveis políticos (neste caso mais unânime, pelo menos nos que se pronunciaram) a discussão percorre o seu caminho natural para as colunas de jornais e suas mal-amadas caixas de comentários e claro, para o ex-libris do debate público atual, as redes sociais.

Tem sido assim, especialmente para debates desta natureza (não só,mas estes são os preferidos) onde não há termos técnicos complexos, não se requerem análises de relatórios de contas nem é necessária uma descida à especialidade que as redes sociais se apropriam ferozmente dos debates. Isto é mau? Não. Não é de todo mau que um espaço que acumula as características de acessibilidade e coabitação de todo o tipo de pessoas e opiniões, incluindo responsáveis públicos (políticos ou outros), partidos, empresas e instituições seja palco de discussão dos assuntos da atualidade. É aliás, o mais normal.

Contudo, é importante para nós como sociedade compreender como está a ser feito o debate nas redes de comunicação do século XXI onde o código deontológico ulitizado é semelhante ao que existe numa conversa entre vizinhos num snack-bar, mas o espaço é ampliado a um sem-fim de pessoas, muitas delas protegidas atrás do anonimato e todas elas pela distância. As redes sociais tornam-se no grande difusor de informação e o principal ponto de contacto de opiniões para mais e mais pessoas a cada dia, e é aí, precisamente nesses 2 pontos, que residem os problemas que urgem ser compreendidos e explorados com vista a uma solução. Trata-se sobretudo de manter a sanidade num dos pilares que sustenta a saúde da democracia: o debate de ideias.

 

Problema 1:Informação

A informação partilhada rápida e livremente tem levado ao já reconhecido fenómeno das "fake news". Seja por bots ou contas falsas de mal-intencionados, seja pelos que por uma falta de exigência e rigor são apanhados na onda da desinformação, é hoje fácil de encontrar nas redes sociais (chegando até por vezes a jornais) um crescendo de informação falsa que tem comprovadamente tido um papel no molde da opinião pública e possivelmente em decisões políticas e até eleições (existe documentação extensa deste fenómeno nas últimas eleições americanas).

 

Solução 1: Rigor informativo

Ultimamente, confrontadas com este problema, as redes sociais têm adotado 2 tipos de ações na sua política de lidar com a informação.Na minha opinião, uma delas positiva e outra negativa. A melhor identificação de contas falsas, bots e de intenções claras de propaganda utilizando informação falsa,aliada ao consequente término dessas contas é uma positiva atuação das redes sociais, assumindo a sua responsabilidade social, que bem feita restringe apenas o uso abusivo. A parte negativa prende-se com uma tendência de fact-checks diretos nos posts, como aconteceu recentemente a Donald Trump no Twitter, tendo o presidente americano e ávido utilizador dessa rede social se apressado a fazer novos posts inflamados face a esta situação. Com isto não quero dizer que o Trump assim como qualquer responsável público não deva ser fact-checked, mas que essa função deve fazer parte de uma imprensa que tem pela sua função deveres e responsabilidades de isenção e procura da verdade e não por uma rede social que decida o que é ou não facto e o exponha diretamente nas palavras, em primeira mão, a quem escolher. Assim, às redes sociais devemos confiar apenas a restrição do uso abusivo e devemos exigir sim à imprensa que se assuma, como aliás precisa, como meio de comunicação mais confiável. Neste sentido vejo com bons olhos os vários conteúdos de fact-checking que crescem na imprensa, mas é necessário que o público esteja também ele capaz de exigir e ter exigência na informação que recebe. É por isso necessário potenciar a literacia da população nesta área, explicando o fenómeno, as suas consequências,e exigir à imprensa que transmita ser a alternativa de confiança (estimulando a transparência e o respeito pelo código deontológico). A escola deve ser também um local onde a nova geração aprenda a viver no meio deste vendaval de informação,e não basta dizer que existe uma disciplina sobre Tecnologias de Informação e Comunicação, é preciso que esta seja útil.

 

Problema 2: a economia de clicks

Há muito que a natureza humana tem sido explorada por revistas e jornais "tablóides" que, com títulos sensacionalistas, cativam mais leitores aproveitando a curiosidade natural relativamente àquilo que choca,que gera conflito, que motiva revolta. Nas redes sociais este fenómeno não é senão ampliado. Rapidamente as ideias mais extremadas e acusatórias são tornadas virais, e defendidas como sagradas pelos correligionários de um lado do debate e rebatidas violentamente pelo outro. Raras serão as vezes em que este debate esteja repleto de factos e ideias discutidas de forma democrática. Quase todas as em que não existirá mais do que o insulto. No final, nada se retira do debate e fica apenas a opinião extremada transmitida por todos, tornando-se uma tendência e espalhando-se ainda mais. Neste meio,quanto mais pessoas virem uma coisa,mais pessoas a vão ver. Este efeito multiplicador na economia de clicks, aliado à natureza humana de procurar aquilo que o revolta faz com que as redes sociais façam parecer que as opiniões da sociedade estão incrivelmente extremadas. Afinal de contas, quantas pessoas clickarão num texto de opinião deste tamanho quando o André Ventura disse uma frase tão polémica sobre o racismo. E não se trata apenas de serem opiniões extremadas. Nada de errado existe numa opinião radical e contra-sistema, desde que bem fundamentada é tão legítima como qualquer outra. Mas o que existe é um aproveitamento de uma transmissão de opiniões com o puro objetivo de chocar e revoltar como forma de obter exposição e benefício com esta. Bolsonaro tem grupos de apoio enormes no Facebook, que o ajudaram a crescer até presidente e propagandeiam o seu "sucesso". Ventura é constantemente uma tendência no Twitter. Não é por acaso. O registo populista é beneficiado por um debate que ocorre nas redes sociais pois deste pouco sobra de debate de ideias e muito de polémica, revolta e ódio, que conjugam o prato preferido na dieta destes movimentos.

 

Solução 2: ampliar o debate

Mas estarão as opiniões mesmo extremadas e as redes sociais apenas deram isso a conhecer? Bom, sem dúvida são uma plataforma que permite a expressão livre de ideias que anteriormente se escondiam, no entanto, constitui ela própria a lenha para inflamar o debate, pelas características referidas acima.As opiniões bem fundamentadas e o bom senso não geram clicks e dificilmente serão capazes de coexistir na companhia de debates tão desprovidos destes. É de muita dificuldade introduzir uma boa discussão num debate inflamado e de mais ainda difundir aquilo que não o seja.

Existem, claro, outliers e antros de bom senso nas redes. E, muitos,que lutam e expõem boas causas em que acreditam e ali encontram um meio útil para a transmissão das mesmas. A esses, estão a fazer muito bom uso da plataforma, mas vocês próprios concordarão como é difícil passar da exposição de conteúdo para o verdadeiro debate, e como chovem acusações mais rápido do que opiniões.

Assim, não se trata de criticar ou acusar aqueles que usam as redes sociais como meio de debate. Muito pelo contrário, uma das soluções passaria por tentarmos globalmente ser mais vocais na exposição do bom senso, bem como mais rigorosos e seletivos na nossa comunicação. Por outro lado, trata-se de constatar como é, na realidade, feito o debate público no século XXI e as falhas que existem no seu palco que mais espectadores tem. Seria porventura desejável que as figuras, nomeadamente políticas pois têm o dever de ouvir o povo, procurassem expandir o debate, nestas ou noutras plataformas que permitissem o contacto com as opiniões da população em diferentes ambientes: cooperações com jornais para debate mais ou menos direto com os cidadãos,espaço para audição pública em diversas sedes, maior e menos burocrática abertura à participação política, entre outras iniciativas que se possam imaginar.

As redes sociais devem continuar a funcionar, as ideias lá debatidas são importantes de serem ouvidas e expostas, existe muita exposição de boas iniciativas que chegam a mais gente do que nunca. Mas o debate público é de baixo rigor e qualidade. Há que, nestas ou noutras plataformas, ampliar o debate, não apagá-lo mas sim permitir que não seja moderado por clicks de revolta, mas sim pela discussão de ideias. Apelo a que o bom senso e a fundamentação com factos (seja para opiniões radicais ou não) seja central no debate, pela saúde da nossa democracia.

 

 

 

 

 

 

João Nunes

Estudante da licenciatura de economia do ISCTE-IUL. Membro fundador do Falatório.

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