A avaria do elevador social

Jul 6, 2020
Crónicas

No quadro da pandemia da covid-19, temos visto uma chegada aos meios de informação de um tema crítico para a sociedade portuguesa, que se agravou com esta situação: a desigualdade no acesso ao ensino, um campo no qual a intervenção do Estado se destina justa e principalmente a “igualar” as oportunidades que são concedidas a alunos oriundos de contextos geográficos e socioeconómicos diferentes.

Efetivamente, a utilização do ensino à distância veio agravar as diferenças de condições de aprendizagem dos alunos, dividindo-os em alunos que têm ou não têm computador pessoal, que têm ou não acesso à internet, que têm ou não em casa um ambiente propício à concentração e ao empenho nas tarefas escolares, e, agora, na assistência às aulas.

Importa, no entanto, observar, que estes “novos” problemas não passam de um acentuar de um fenómeno já existente no sistema de ensino português, muito apesar da intervenção do Estado no setor: na escola, vemos reproduzidas as mesmas relações socioeconómicas do que na meio laboral e, por consequente, em toda a nossa sociedade.

Não será surpresa para ninguém constatar que o sucesso escolar de um aluno está fortemente correlacionado com os níveis de rendimento, qualificações e ocupações profissionais dos pais. Famílias de estrato social superior podem oferecer melhores condições de estudo aos seus filhos em casa (em termos materiais), tendem a ser mais ambiciosos nos objetivos que idealizam para os seus filhos, e não têm tantas vezes necessidade de os “desviar” do caminho académico para que possam contribuir no curto prazo para a subsistência da família.

Adicionalmente, os estratos sociais mais elevados têm melhores possibilidades de acesso à escola privada, que ainda é uma instituição de grande importância e prestígio e melhora as probabilidades de sucesso escolar: no ranking de escolas do Observador de 2019, “desenhado” a partir dos resultados médios obtidos nos exames nacionais de 12º ano, os 40 primeiros lugares da lista são ocupados por 38 (trinta e oito!) escolas privadas, e apenas 2 públicas.

Talvez por consequência destes fatores económicos, que se refletem nas diferenças de “andamento” entre litoral e interior do nosso país,verificamos igualmente grandes desigualdades entre o ensino no litoral e o ensino no interior: se utilizarmos o mesmo ranking acima referido, encontramos apenas 29 escolas do interior do país entre as 100 primeiras classificadas, a maioria repartidas entre os distritos de Coimbra e Viseu.

A diferença de exigência e qualidade do ensino entre litoral e interior que está por trás deste índice representa mais um obstáculo para quem nasce no interior e se vê assim ativamente discriminado pelo sistema educativo do Estado: se se tratar de um aluno sem condições financeiras para aceder ao privado, terá lacunas na sua formação que lhe tornarão mais difícil a tarefa de vingar nos exames nacionais e aceder às melhores instituições do ensino superior, que, aqui mais uma vez, se encontram no litoral (!). Aqui, acresce ainda o esforço financeiro necessário para se deslocar e radicar no litoral (transportes, habitação, diferenças no custo de vida). Se o estudante ultrapassar todos estes obstáculos, talvez possa aceder às oportunidades de trabalho que estão em grande maioria…no litoral, empobrecendo o interior demais um trabalhador qualificado.

Será impossível ter uma exigência e qualidade mais universal no nosso ensino, entre escolas de zonas pobres e zonas ricas, entre escolas públicas e privadas? Não creio que estas falhas sejam inerentes à gestão pública. Creio sim num fechar dos olhos a uma situação que desafia a própria Constituição da nossa República: um bom exemplo para mim é o anunciar pelo Governo, em 2019, de um investimento forte (14 mil camas) para ajudar o alojamento de estudantes universitários deslocados nos próximos 5 anos. Uma solução tão mais fácil para o excesso de procura das universidades do litoral do que seria investir na atratividade dos pólos universitários fora das grandes cidades: face a um ensino de qualidade e prestígio equivalente, quem não prefere estudar perto de casa? Fica a dúvida sobre quais os planos do poder político para a tão falada regionalização que se debate há décadas em Portugal…

Ao fim e ao cabo, e se é verdade que podemos aqui enfrentar uma questão “do ovo e da galinha” no que toca ao reproduzir destas desigualdades, podemos chegar à conclusão de que a intervenção do Estado se encontra bem longe dos seus objetivos delineados na CRP: o chamado elevador social tem uma avaria grave. A Educação portuguesa mantém ricos em cima e pobres em baixo. Mantém e agrava desigualdades sociais e regionais cada vez maiores. Será impossível fazer mais pela escola pública, ou será apenas uma tarefa ingrata em termos políticos, que não atrai os seus hipotéticos executantes?

 

Imagem: O corvo

André Pinto

Estudante da licenciatura de economia do ISCTE-IUL. Membro fundador do Falatório.

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