Grandes políticos portugueses #1: Mário Soares

Jun 26, 2020
Artigos

Na série "grandes políticos portugueses" contamos um pouco da história dos homens e mulheres que tiveram um papel de destaque na política democrática em Portugal, passando pelos vários quadrantes políticos e explicando o legado que para estes deixaram,na sua obra e, sobretudo, nas suas ideias. No primeiro artigo desta série falamos de Mário Soares.

A luta contra a ditadura

Mário Alberto Nobre Lopes Soares,nascido em Lisboa no ano de 1924, cresceu numa família opositora ao regime,tendo no seu pai um republicano convicto preso e exilado por oposição à ditadura. Assim, desde cedo, nos tempos de estudante da Faculdade de Letras se afirmou como anti-salazarista e conspiracionista contra o regime. Para o fazer juntou-se ao que dizia ser o único grupo que ativamente o combatia e procurava derrubar, o Partido Comunista Português. Pelo Comité do PCP das Caldas da Rainha, recrutou membros e fez campanha clandestina e o seu entusiasmo na luta política valeu-lhe uma maior relevância no partido, integrando outros movimentos como o MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista) e o MUD (Movimento de Unidade Democrática), até eventualmente passar por uma dissidência com o PCP do qual deixou de ser membro. Já como adulto foi advogado de defesa de vários presos políticos, inclusive participando no caso do assassinato de Humberto Delgado e concorreu pela oposição democrática ao regime. Foi preso 12 vezes pela sua atividade política e em 1968 deportado para São Tomé. Depois deste período exilou-se em França, e passou por vários países expondo a ditadura portuguesa. Sabendo que a queda do regime estava finalmente próxima na governação de Marcello Caetano, precisava de criar o instrumento para efetivar o processo político democrático em Portugal, e é então um dos membros fundadores do Partido Socialista em 1973. Depois do 25 de abril, volta a Portugal ainda a tempo das grandes manifestações populares do 1º Maio onde discursa ao lado de Álvaro Cunhal.

PREC – Descolonização e Democratização

A luta constante contra o regime,sem desistir e com enorme entusiasmo mesmo após a repressão e a prisão foi um contributo louvável para o fim da ditadura salazarista em Portugal, mas para alguns o contributo mais importante de Mário Soares para a democracia viria só após o 25 Abril. Durante o PREC, fez parte de vários Governos Provisórios onde a sua função mais premente foi a de organizar o processo de descolonização, um dos mais controversos da sua longa carreira política. Se é verdade que fez retornar quase um milhão de portugueses das colónias, não é menos verdade que estes e as suas famílias em muito se sentiram lesados pelo que perderam ou tiveram de deixar em África, bem como pelo que diziam ser o seu “abandono” aquando da chegada à terra natal. Muitos insuspeitos vieram defender Soares, até mesmo Freitas do Amaral, e outros acusá-lo, sendo que mesmo na própria altura da descolonização, entre militares, presidente e Mário Soares (ministro dos negócios estrangeiros), o conflito interno existia e o consenso nunca existiu.

Durante o PREC, Soares tornou claro que o tempo não era o da subida pela avenida da liberdade de braço dado com Álvaro Cunhal. A tensão entre PS e PCP era crescente, numa altura em que Mário Soares procurava apresentar o PS como uma alternativa democrática de esquerda distante das raízes soviéticas do PCP. Aliás, na própria fundação do Partido Socialista em 1973, Soares havia pedido uma reestruturação dos ideais no manifesto do partido por considerá-los demasiado radicais e foi com essa ideia que chegou a Lisboa e procurou construir a democracia em Portugal. Assim, via no PCP o perigo de queda noutra ditadura, numa altura quente na política portuguesa onde aconteciam ao mesmo tempo movimentos populares de ocupação de fábricas no Alentejo e uma proclamação de uma suposta “maioria silenciosa” de direita com o CDS e o PPD. No famoso comício da fonte luminosa, Mário Soares lança críticas duras a Vasco Gonçalves (líder do governo provisório com ligações ao PCP) e aos dirigentes sindicais acusando-os de irresponsabilidade e que contribuíam para a desacreditação do Partido Comunista aos olhos dos portugueses. Este comício foi encarado como uma aproximação à direita (e à Igreja) e um grande afastamento do PCP, bem como o caminho para o 25 de novembro, algo não esquecido ao longo dos anos por ambos os lados da luta política, com sentimentos opostos claro está.Em vésperas do 25 novembro ocorria na televisão nacional o que foi e provavelmente ainda é o debate entre candidatos políticos que mais atenção gerou e mais mediático se tornou, o debate entre Soares e Cunhal. Neste, Soares diz querer uma sociedade socialista, sem classes, mas com liberdades algo que acusava o PCP de não ser capaz de proporcionar, enquanto Cunhal acusava o seu antigo camarada de partido de pôr de parte o socialismo e de se apoiar em reacionários “contra os quais se faz a revolução”. Talvez tenha sido também o debate político onde se tenha falado mais de questões e visões ideológicas da sociedade portuguesa, mostrando o ambiente bem diferente da política portuguesa de há 45 anos. Os portugueses, no entanto, decidiram nas urnas dar ao PS a vitória nas eleições tornando Mário Soares no primeiro primeiro-ministro civil da democracia.

Primeiro-Ministro – Procura pela estabilidade e desenvolvimento

O período era difícil, com uma conjuntura internacional que potenciava a crise económica face ao choque petrolífero existente nesta altura dos anos 70, e Portugal tentava com muita dificuldade, e com a ajuda do FMI, reabilitar o seu tecido económico. Estas dificuldades faziam a democracia portuguesa, ainda na sua infância, sofrer de grande instabilidade e o I Governo caiu, dando lugar a um outro chefiado também por Soares mas com uma aliança com o CDS-PP, sendo, para muitos, este o momento em que o PS realmente pôs “o socialismo na gaveta”.

Mas Mário Soares tinha vindo do exílio com ideias claras para o país: a descolonização possível, a criação de uma democracia pluralista e não uma ditadura popular, e por fim, o desenvolvimento com a entrada na CEE. Europeísta convicto, conduziu Portugal para a entrada na Comunidade Europeia, formalizando esta adesão num novo período de intervenção financeira em Portugal, num governo em aliança com o PSD. Ao longo da sua vida defendeu a integração europeia, e já após a entrada no Euro criticou a forma como esta terá cedido aos interesses “neoliberais” e que seria necessário um maior nível de união (federalista), com “governo e símbolos europeus”.

Já com anos de governação, Mário Soares começava a criar no povo português uma dicotomia na forma como este olhava para a sua imagem política: por um lado, prezando os ideais e a força para a criação de um regime democrático, plural e europeísta, por outro,vivendo empiricamente fases de sucessivas intervenções financeiras e dificuldades económicas.

Presidente da República – As eleições de 1986

No entanto, a carreira política deste que já era um político com um enorme relevo em Portugal não terminaria aqui. Concorre às eleições presidenciais de 1986, onde nas primeiras sondagens tem 8%, longe do favorito Freitas do Amaral. Sabendo a história de Soares até este momento, compreende-se que apesar de ter suscitado o apreço de muitos,conquistou também o ódio de alguns, nomeadamente retornados e comunistas, sendo o conflito com estes últimos aquele que leva a um episódio onde a sua comitiva é agredida na Marinha Grande durante a campanha, levando o candidato presidencial a dizer que “era livre” e que “a Marinha grande não é Moscovo”. O mediatismo do acontecimento catapultou Soares para uma segunda volta histórica com Freitas do Amaral, espalhando o slogan que rapidamente se tornou famoso:“Soares é fixe”. Nunca mais umas eleições motivaram tanta adesão e paixão como estas. Nos liceus, nas escolas, nas próprias famílias o país dividia-se entre Soares e Freitas do Amaral num imaginário político que suscita ainda hoje inspiração para séries, bem distante do panorama eleitoral atual. Soares ganha as eleições de uma forma impressionante com o apoio de toda a esquerda,incluindo Álvaro Cunhal com a sua famosa frase pedindo aos comunistas que votem em Soares, se for preciso, “com a mão à frente dos olhos” .Uma pequena margem foi suficiente para torná-lo no primeiro presidente civil da democracia. Seria presidente durante 2 mandatos dos quais sairia com elevados níveis de popularidade, apesar de discordâncias com o primeiro-ministro Cavaco Silva.

O Legado

Em 2006, já com 82 anos concorre e perde para Cavaco Silva nas eleições presidenciais. Pelo meio teve ainda uma passagem por deputado europeu, nesta que foi uma longa carreira política que se confunde com a democracia em Portugal. Mário Soares foi personagem central em todos os grandes momentos que definem o que hoje é o regime português. Lutou pela democracia, pela democracia em que acreditava, plural e europeísta e conseguiu torná-la uma realidade. Demonstrou inegável coragem na forma como encarou a vida política e um entusiasmo próprio que se refletiu também no entusiasmo com que se viveu a política portuguesa em épocas muitas vezes conturbadas, onde a sua própria governação o foi, sofrendo justamente o escrutínio do povo que muitas vezes lhe exigiu mais eficácia e transparência em parte dos seus períodos governativos. Terá, como todas as grandes figuras, deixado um legado que de tão estruturado que ficou na sociedade e política portuguesas, é difícil de classificar: alguns não perdoarão o travão que pôs à revolução comunista, mas não poderão esquecer o seu papel no fim da ditadura; outros criticarão os seus períodos de governação e sucessivas ajudas externas, mas não poderão esquecer o seu papel na construção do regime democrático plural que lhes deu voz e talvez todos, não poderemos esquecer o seu papel no cimentar do direito à liberdade em Portugal.No partido que fundou, deixou um legado de capacidade de governação, mas podemos encontrar divergências de forma ideológica, sabendo que o PS atual se aproximará mais àquele acusado de “pôr o socialismo na gaveta” em 78 do que o que dizia procurar uma “sociedade sem classes” e o socialismo em 75, governando hoje longe das suas origens bem mais reformistas, mas obviamente ainda repercutindo os valores de europeísmo e pluralismo. O peso ideológico de Soares não deve ser esquecido. Neste capítulo, trouxe-nos o socialismo democrático, a procura da democracia plural e ao mesmo tempo de uma sociedade aclassista e igualitária, a união e solidariedade europeias e o combate a todos os tipos de repressão da liberdade, ideias ainda hoje relevantes no debate e na vida política.No final da sua vida, Mário Soares não se absteve de comentar, ora exigindo mudanças na Europa ora no seu tom sempre polémico defendendo José Sócrates, ora pedindo no seu próprio país uma política “ de punho levantado”. O seu legado não é, como em qualquer político em democracia, consensual; mas será inequivocamente de grande relevância.

Mário Soares morreu a 7 de janeiro de 2017 e será, sempre, um grande político português.

João Nunes

Estudante da licenciatura de economia do ISCTE-IUL. Membro fundador do Falatório.

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