Na série "grandes políticos portugueses" contamos um pouco da história dos homens e mulheres que tiveram um papel de destaque na política democrática em Portugal, passando pelos vários quadrantes políticos e explicando o legado que para estes deixaram, na sua obra e, sobretudo, nas suas ideias. No segundo artigo desta série falamos de Ramalho Eanes.
O rumo militar
António dos Santos Ramalho Eanes nasceu em Alcains e estudou em Castelo Branco, até ingressar no Exército aos 17 anos. Foi na carreira militar que se notabilizou, tendo participado na Guerra Colonial, com comissões na Índia (1958-1960); Macau (1962); Moçambique (1964, 1966-1968); Guiné (1969-1971) e Angola (1971- abril de 1974), tendo chegado a general em 1976.
Foi da geração que participou em toda a Guerra Colonial e fez parte da fação crescente de militares que protestaram contra o regime e a forma como este geria a guerra e o próprio Exército. Em 1973 participa ao lado de vários militares em protestos contra Marcello Caetano após mudanças na carreira militar e junta-se ao MFA. Não participou no 25 de Abril, uma vez que estava em Angola na altura.
Quando chega a Portugal encontra um país em processo revolucionário, dividido. Politicamente as divergências eram enormes e o que estava em causa era o rumo do regime. No verão quente de 75, os ânimos da revolução exaltam-se entre os reacionários, os que queriam uma democracia ao estilo europeu e aqueles que procuravam a via comunista. Existiam assaltos às sedes dos vários partidos e o perigo de divisão dos militares trazia o risco de confrontos armados e mais sangrentos.
Mas a verdade é que esta divisão nas forças armadas existia mesmo, formando 4 grupos de apoio. Alguns militares apoiavam Otelo Saraiva de Carvalho, da esquerda radical, com suporte de grupos de esquerda como a UDP. Outros, o PCP e Vasco Gonçalves, chefe do governo provisório que nesta altura procedia às várias nacionalizações que ocorreram no PREC. Alguns outros ainda, nomeadamente uma série de oficiais reacionários, seguiam o General Spínola. E, por fim, o grupo no qual Ramalho Eanes se veio a rever - o Grupo dos Nove - que tinha sido formado por nove conselheiros (do Conselho da Revolução, que supervisionava o governo) que assinaram um documento que ganhou adesão, referindo uma alternativa à crise, uma terceira via que revelava os efeitos nocivos da inspiração soviética dos que construíam o novo regime e vontade de construir sim um regime de “verdadeira independência nacional”, que não fosse nem o social-democrata europeu, nem o soviético e que abrisse caminho à democracia pluralista e às liberdades.
O 25 de Novembro
Ramalho Eanes foi escolhido pelo Grupo dos Nove para liderar a proteção a um eventual golpe que procurasse estabelecer a via comunista, após a queda do governo de Vasco Gonçalves. Foi o que aconteceu a 25 de novembro de 1975, quando uma parte das forças armadas ligadas à extrema-esquerda tentou fazer um golpe de Estado, movimento que saiu frustrado pelo grande sucesso da equipa liderada por Eanes. Este golpe falhado marcou o fim do PREC e do Verão Quente, e criou a possibilidade de uma acalmia nacional.
Um político acima dos partidos
Após o 25 de novembro, Ramalho Eanes surge encabeçando a unidade militar que “não está sectorizada” nem reflete os desígnios de nenhum partido mas que procura sim a acalmia nacional, a segurança e a criação de condições para que se instaure um regime democrático livre em Portugal. Ficará por isso sempre marcado positivamente na memória de muitos portugueses que pretendiam isso mesmo, a acalmia e a estabilidade. A possibilidade da sua vontade, a vontade da maioria, ser ouvida num novo regime.
Como tal, e ainda num Portugal com um Conselho Revolucionário e influência militar, Ramalho Eanes candidata-se e ganha com uma boa margem as eleições presidenciais de 27 de Junho de 1976, somando 61% dos votos, contra 16 de Otelo Saraiva de Carvalho. O grande objetivo do primeiro presidente português eleito por sufrágio livre e universal seria a normalização do regime. Mas essa tarefa não seria fácil.
Primeiramente, Eanes teve um papel crucial na pacificação militar, a retornada aos quartéis, a reestruturação do Exército e a eliminação do perigo de novos conflitos. Na sua caminhada presidencial, os conflitos foram outros e de outra natureza, de natureza política. Ramalho Eanes viu sempre o seu papel de presidente como interventivo e de um papel intransigente na garantia de que os direitos fundamentais eram respeitados. Neste período, o presidente podia mais facilmente demitir governos, dissolver a Assembleia e vetar leis. Aliado ao cargo de Chefe Maior das Forças Armadas, o poder de Ramalho Eanes era de grande relevância. Esta condição valeu-lhe a discordância com muitos governos, a exonerações como fez a Mário Soares, a propostas de novos governos de iniciativa presidencial que viu rejeitados e a governos de transição como o de Maria de Lurdes Pintassilgo. Desde o PS de Mário Soares até à Aliança Democrática de Sá Carneiro, a guerra aberta com o presidente foi uma constante.
No entanto, a não ligação aos partidos era, e ainda é, como que um porto de abrigo para os portugueses que garantiam elevados níveis de popularidade a Eanes, justificando o seu papel como figura acima dos partidos e como condutor e acima de tudo, disciplinador da vida política nacional. Assim, viria a ganhar novas eleições presidenciais em 1980, mais uma vez à 1ª volta.
A normalização do regime
Apesar das várias disputas com os sucessivos governos, o processo de normalização foi avançando, provavelmente até mais pela ação parlamentar, visto que alguma dela não teve o avalo do então presidente da república. Os poderes do presidente foram diminuídos, os militares foram separados da política, foram feitas revisões constitucionais, o Conselho da Revolução desapareceu – a democracia aproximava-se àquela que existe hoje.
Partido Renovador Democrático
Em 1985, formava-se um partido de centro/centro-esquerda onde a figura de Eanes era central. Hermínio Martinho liderava o Partido mas o seu ícone e inspiração era o presidente Eanes. Defendeu a reforma de vários setores da Administração Pública e a procura de independência económica face ao estrangeiro, passando pelo reforço dos poderes presidenciais. Este partido veio a ter um crescimento incrível, participando pela primeira vez em eleições no ano da sua fundação, após uma dissolução parlamentar decidida por Eanes que levou a umas eleições antecipadas onde o PRD saiu como a terceira força política do país.
Eanes viria a assumir a liderança do partido mas também a deixá-la rapidamente após o desastre eleitoral das eleições seguintes em 1987. Ramalho Eanes saía da cena política e o Partido Renovador Democrático viria a desaparecer quase tão rapidamente quanto tinha crescido, sendo que em nenhumas outras eleições foi relevante e acabou por desaparecer no ano 2000. Curiosamente, este partido não tinha sido extinto e militantes da direita nacionalista adquiriram-no, pagaram as dívidas e tornaram-no no que é hoje o PNR, em nada senão nisto relacionado com este antigo PDR.
Legado
Reconhecendo que o seu papel no PRD não terá sido o mais feliz ou relevante a longo prazo, foi o papel como militar e presidente que fica na história e na mente dos portugueses. Para além da ação fundamental no 25 de novembro, duas coisas se destacam na figura de Ramalho Eanes: a posição suprapartidária, procurando valores que englobavam verdadeiramente toda a população, acima dos interesses e dos sistemas dos partidos; e a seriedade. Para além do que até agora tinha sido referido neste artigo, o que muitos portugueses que estiveram atentos à atuação pública de Eanes destacam ainda hoje é a sua posição de seriedade, de firmeza e de disciplina. A opinião pública destacará provavelmente mais do que qualquer ação concreta do seu primeiro presidente eleito após o 25 de abril, a sua postura. Postura essa que hoje, na força dos seus 85 anos mantém. Observando desde participações em discursos celebratórios de momentos da nossa história, até a comentários recentes sobre a situação pandémica, da boca de muitos portugueses que o observam sairá: “Este é um homem sério”.
A verdade é que sendo um político que não o era bem, estando dissociado dos partidos e aliás, muitas vezes deixando-os a sentir-se desautorizados, criou uma popularidade que é, de certo modo, representativa daquilo que os portugueses não vêm nos partidos: a seriedade e o interesse nacional postos sempre em primeiro plano. O legado de Ramalho Eanes não ficará tanto na ideologia política mas sim naquilo que deve ser um político. Ficará no exemplo de união, procura da estabilidade, e nos valores e postura firme.
António Ramalho Eanes tem hoje 85 anos. É e será, sempre, um grande político português.