Grandes políticos portugueses #3: Álvaro Cunhal

Jul 23, 2020
Artigos

Na série "grandes políticos portugueses" contamos um pouco da história dos homens e mulheres que tiveram um papel de destaque na política democrática em Portugal, passando pelos vários quadrantes políticos e explicando o legado que para estes deixaram, na sua obra e, sobretudo, nas suas ideias. No terceiro artigo desta série falamos de Álvaro Cunhal.

Infância e juventude

Nascido em Coimbra no ano de 1913 no seio de uma família de classe média, Álvaro Cunhal mudou-separa Lisboa com os pais aos 11 anos, onde frequentou o Liceu Camões, e prosseguiu para Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi aí, com apenas 17 anos, que começou a sua atividade revolucionária, filiando-se no então clandestino Partido Comunista Português e integrando a Liga dos Amigos da URSS e o Socorro Vermelho Internacional.

O ativismo político do jovem Cunhal levou-o desde cedo a cargos importantes: em 1934 chega a representante dos estudantes no Senado da Universidade de Lisboa e em 1935 a secretário-geral da Federação das Juventudes Comunistas. Visita a URSS em 1936 e é indicado pelo Partido Comunista da URSS para o Comité Central do PCP. Ao longo dos anos 30 colabora com e escreve diversos artigos de intervenção em jornais como O Diabo, Seara Nova e Vértice e nas publicações clandestinas Avante! e Militante.

Comunista convicto e opositor fervoroso do regime salazarista, Cunhal seria então“marcado” rigidamente pela PIDE: entre 1937 e 1960 esteve preso por um total de 15 anos. Em 1940, durante uma dessas penas de prisão, foi celebremente escoltado até à FCUL, onde defendeu uma tese de licenciatura na qual defendia a legalização do aborto, perante um júri composto por ilustres salazaristas, como o próprio Marcello Caetano. A tese foi avaliada em 16 valores.

Dissidência,a vida na prisão e a lealdade a Moscovo

Já referido acima, Cunhal viveu entre a prisão e a rebelião entre as décadas de 30 e 60, tentando fugir ao regime utilizando vários nomes falsos mas sendo preso 3 vezes. Na prisão, relata-se que Cunhal terá revelado uma coragem de aço: foi torturado e espancado e passou um total de 8 anos de isolamento, mas nunca confessou ou denunciou os camaradas com quem agiu. Escreveu vários romances na prisão e traduziu (e ilustrou) notavelmente Rei Lear, de Shakespeare, para o português.

Da sua última prisão, em Peniche (em 1949), fugiu em 1960, protagonizando com outros 9 presos políticos um episódio marcante da História de Portugal (a Fuga de Peniche) e tornou-se secretário-geral do PCP em 1961. Seguiu depois para o exílio: é enviado pelo PCUS para Moscovo em 1962, tendo-se depois mudado para Paris para estar mais perto da atividade política portuguesa.

Em 1968 presidiu à Conferência dos Partidos Comunistas da Europa Ocidental, dado revelador da sua grande popularidade entre as chefias comunistas soviéticas. O seu alinhamento incondicional com Moscovo valeu-lhe até discordância com a maior parte dos Partidos Comunistas europeus: um exemplo é o seu apoio à invasão militar da Checoslováquia, que deu fim à Primavera de Praga (um movimento de liberalização política e económica liderado pelo reformista checo Dubček que visava um socialismo mais humano e respeitador das liberdades individuais). Já em 1967 tinha sido condecorado com a Ordem da Revolução de Outubro, no quinquagésimo aniversário da mesma.

Revolução, luta pelo poder e cargos políticos

Cinco dias após a revolução do 25 de abril de 1974, Cunhal regressou a Portugal, sendo recebido em apoteose no Aeroporto da Portela. Discursou e marchou ao lado de Mário Soares no 1º de maio desse ano, mas cedo se tornariam ferozes adversários políticos. Derrubado o regime do Estado Novo, o PCP de Cunhal desejava uma revolução proletária que culminasse numa República Popular portuguesa, ao estilo soviético. O PS de Mário Soares, por outro lado, pretendia instalar no país um socialismo democrático (podemos dizer que à imagem do da Primavera de Praga).

No Processo Revolucionário Em Curso, que durou 2 anos após o 25 de abril, a esquerda socialista/comunista encontrava-se assim fragmentada, e os novos partidos não-marxistas (PSD e CDS) surgiam como uma alternativa social-democrata.Resistiam ainda algumas forças contrarrevolucionárias leais ao antigo regime.Portugal encontrava-se dividido.

Após uma tentativa de golpe de Estado falhada por forças spinolistas de extrema-direita, frustrada em março de 1975, o país passou por um Verão Quente, de muita violência entre a esquerda e direita políticas.

Em novembro de 1975, foi transmitido na RTP um debate de importância histórica entre Soares e Cunhal em que se debatem e opõem as visões dos dois partidos acerca do futuro do país. Nele, Soares acusou Cunhal (e o PCP) de querer instaurar uma ditadura comunista em Portugal (é célebre a resposta de Cunhal: “olhe que não, senhor Doutor, olhe que não”). A 25 de novembro desse mês, mais uma tentativa de golpe de Estado, desta vez pelas forças de extrema-esquerda,falhou, pondo fim a este período de incerteza. O PS venceu as primeiras eleições legislativas em 1976 e o PCP viu-se assim relegado para quarta força política portuguesa. Depois de ter sido ministro em 4 Governos provisórios,Cunhal e o seu PCP fariam agora apenas parte da oposição política ao Governo.

E foi nesse papel que Cunhal se manteve como secretário-geral do PCP e deputado à Assembleia da República, até 1992, data em que abandonou ambos os cargos.

Fim e legado

Depois de um relativo afastamento da política e dedicação às artes (em especial à pintura e à literatura), Álvaro Cunhal passou por vários problemas de saúde e faleceu em 2005, aos 91 anos.

O legado político de Álvaro Cunhal é extenso e alvo de grande respeito por parte de personalidades de todos os quadrantes políticos. Mesmo os seus adversários políticos, e disso é exemplo o rival Mário Soares, sempre o caracterizaram como um homem de inabaláveis convicções, corajoso e leal aos seus princípios. Foi irredutível na sua oposição ao Estado Novo, assim como o foi na defesa do comunismo posto em prática pela União Soviética.

Impávido perante a mudança dos tempos, Cunhal manteve o mesmo discurso político ao cabo dos seus mais de 60 anos de ativismo e carreira política,sendo assim alvo de fortes críticas por várias das posições que tomou ao longo dos anos, sejam elas as de defesa do autoritarismo soviético ou a sua oposição firme à democracia liberal que viu nascer e crescer em Portugal. No “Bloco Central” que via como formado pelo PS e pelo PSD, Álvaro Cunhal via uma traição e uma desfeita aos ideais da Revolução dos Cravos, e esta é uma convicção que levou até à morte. Também foi e é alvo de críticas pela forma austera como geriu o PCP, com mão de ferro sobre os opositores que fugiam à sua ortodoxia (veja-se a forma como afastou o pacifista Júlio Fogaça do partido).

Apesar disto, a sua rectidão de carácter, a sua coerência, seriedade e determinação, assim como o seu papel no fim da ditadura e na concepção da democracia portuguesa, resultam num quase unânime retrato de Álvaro Cunhal pela História como um Grande Político Português.

André Pinto

Estudante da licenciatura de economia do ISCTE-IUL. Membro fundador do Falatório.

Posts Relacionados

Contacta-nos

Thank you! Your submission has been received!

Oops! Something went wrong while submitting the form