A nossa primeira convidada da Entrevista Falatório é Francisca De Magalhães Barros à qual agradecemos a extrema recetividade e disponibilidade para responder às nossas perguntas. Além de colunista do jornal Sol e artista, é também uma mulher que se dedica ao ativismo. Recentemente Francisca De Magalhães Barros levou à Assembleia uma petição (até ao momento com mais de 48 mil assinaturas) que reclama estatuto de vítima para crianças naquela que tem sido uma causa de luta: o apoio às vítimas de violência doméstica. Poderá, por isso, dar-nos um importante contributo sobre este tópico infelizmente ainda tão relevante na sociedade portuguesa.
Falatório (FT) – Olá e mais uma vez obrigado por aceitar o nosso convite. A sua petição reclama um novo estatuto para as crianças vítimas de violência doméstica. Em que consiste este estatuto? Quais os benefícios consequentes da sua aplicação?
Francisca Barros (FB) – Em termos simples, esta iniciativa visa chamar a atenção do legislador para a necessidade de conferir às crianças que vivem e assistem a violência intra-familiar uma proteção mais eficaz. O Estatuto de Vítima foi criado precisamente com esse fim - é uma ferramenta legal destinada a proteger as vítimas desde o primeiro instante da queixa. Confere-lhes uma série de direitos imediatos (apoio na saúde, no trabalho, apoios sociais, e de proteção no decurso do processo judicial) que na prática são mais eficazes para a proteger. Todavia, ao abrigo deste estatuto existente, só as vítimas diretas da violência estão abrangidas. Adultos e crianças que tenham sido alvo direto dessa violência. As crianças que assistem a violência e são vítimas dessa exposição não estão abrangidas pelo Estatuto. É essa a alteração que entendemos ser fundamental.
FT- Sabemos que a defesa deste estatuto não surgiu agora. Porque é que o estatuto de vítima para crianças em ambientes de violência doméstica não é já contemplado pela lei? Que objeções têm encontrado que a têm impedido de ser implementada?
FB- É preciso antes de mais clarificar: O que pretendemos não é um novo diploma legal, um novo Estatuto a par do existente. Basta que o estatuto actual seja alterado para passar a contemplar expressamente as crianças nesta situação, as vítimas indirectas.
O facto de a situação destas crianças não ter sido expressamente contemplado quando foi criado o Estatuto, prende-se com conceções ultrapassadas que vêem a criança como um sujeito menor de direitos. Historicamente, na sociedade e no Direito, as crianças são olhadas como propriedade do pai, sujeita ao seu poder e excluída da proteção do Estado. A desvalorização da sua vontade e do seu sofrimento tem a sua raíz nesse estatuto de menoridade, que a lei traduz. Hoje em dia, com toda a investigação feita nesta área, sabe-se e é reconhecido à criança um papel de verdadeiro sujeito de direitos e não um mero objecto. Conhecem-se também os efeitos perversos no seu desenvolvimento resultantes da exposição a violência e abuso na infância.
A objeção principal que encontramos é infundamentada. Afirma que a criança nesta situação é já protegida pela lei. Porém, na realidade, o que sucede é que essa alegada proteção resulta da Lei de proteção de crianças e jovens em perigo, a qual, embora considere que estas crianças estão em risco não possuí mecanismos práticos de proteção eficazes e imediatos destas crianças. Permite, na prática, que a necessidade da sua proteção e aplicação de medidas protetivas fique dependente do critério de técnicos da CPCJ, muitas vezes sem habilitações e formação adequada a avaliar e compreender estes fenómenos. Assim, o destino destas crianças fica dependente do critério e avaliação de um técnico, quando muito, em sede judicial, de um procurador, que decide se esta criança é vítima. Há portanto uma margem de apreciação e discricionariedade nesta avaliação o que a prática nos mostra que tem vindo a funcionar em desfavor da criança vítima. Existe uma tendência para desvalorizar o impacto da violência nas crianças quando não são elas próprias vitimas diretas.
FT- Segundo a APAV, o ano passado existiram 23,5 mil pessoas vítimas de violência doméstica, sobretudo mulheres e este número demonstra até um aumento face a 2018, resultando em 35 mortes. O que acontece na sociedade portuguesa que explique este quadro negro?
FB- As causas do fenómenos da violência doméstica estão amplamente estudadas. São razões históricas e culturais que radicam numa conceção patriarcal da sociedade. Não existe mais violência agora. O que sim existe, felizmente, é a consciencialização pela sociedade que a violência é inaceitável. E isso resulta do movimento da emancipação da mulher, no trabalho e na vida pública. Hoje em dia denuncia-se. É essa a diferença. Todos os estudos feitos nesta área apontam a direção a seguir: a par de polítcas claras e e firmes de erradicação das causas da violência ( discriminação da mulher e das minorias de género, desigualdade no trabalho etc) é preciso investir muito mais na educação. A escola tem um papel fundamental neste caminho, que felizmente tem vindo a ser feito mas que pode ser melhorado. Investir na educação e formação cívica da crianças desde tenra idade para os Direitos Humanos é o caminho.
FT- Precisamos de uma reforma judicial no que toca à violência doméstica?
FB- O nosso sistema legal nesta área tem vindo a ser melhorado e é progressista.Não diria que precisa de uma reforma no sentido estrutural. Precisa sim de ser melhorado em aspectos pontuais. Temos de estar atentos às falhas do sistema de proteção e promover continuamente o seu aperfeiçoamento. A alteração do Estatuto de vitima para passar a incluir expressamente estas crianças é um dos aspectos, entre outros, que precisa de ser revisto.
FT- Ultrapassando a parte judicial, na prática sente que as instituições e meios de assistência (p.e. teleassistência, controlo da situação, separação do agressor) às vítimas funcionam adequadamente?
FB- Sabemos que têm muitas falhas. Esses mecanismos de proteção são importantes mas ainda há problemas a ultrapassar. Desde logo, o principal é a resistência de alguns magistrados na aplicação dessas medidas. É, diria eu,um problema de mentalidade, de alguma falta de sensibilização da magistratura( e não só) para a gravidade deste fenómeno. Vemos infelizmente o resultado dessas falhas nos casos que chegam a público de morte de mulheres e crianças. Dizemos que o sistema falhou, e é verdade. É urgente investir também em mais e melhor formação dos agentes judiciários e técnicos de intervenção no terreno.
FT- E especificamente para as crianças , as instituições desde a assistência ao acolhimento são satisfatórias para as proteger?
FB- Há de tudo. Temos bons exemplos de instituições públicas e privadas que prestam um apoio de qualidade às crianças. No entanto ainda persiste uma grande falta de investimento do Estado nesta área. As crianças são as eternas esquecidas do sistema. Não votam, a sua voz não é ouvida. O problema atual que mais me preocupa é a proliferação de instituições subsidiadas pelo Estado sem qualquer preparação para actuar nesta área. São instituições pouco ou nada fiscalizadas, por um lado, e que criam estruturas de custos, nomeadamente de empregos, que a meu ver subvertem o princípio que deve presidir à intervenção e proteção das crianças. Neste contexto são inúmeros os casos de associações que se transformam em negócios para sustentar o seu próprio funcionamento, criar empregos etc. Especialmente quando se trata de instituições de acolhimento de menores, o efeito mais perverso deste sistema é a tendência para institucionalizar demais, para retirar as crianças às famílias. Por cada criança acolhida e institucionalizada estas entidades recebem um valor do Estado, variável, mas que na maioria dos casos podia ser canalizado para dotar a família de estruturas, condições e formação para melhor cuidar dos filhos. Obviamente que estas instituições, porque dependem desses apoios para subsistir, tendencialmente vão decidir sempre pela retirada as famílias, pelo acolhimento, pela institucionalização. O efeito desta política no desenvolvimento da crianças é uma catástrofe. São vidas destruídas, famílias desfeitas.
FT- Irão as novas gerações trazer alterações a este paradigma? Desde a adolescência e do namoro, quão cedo podem aparecer indícios preocupantes e como podemos resolvê-los?
FB- Eu tenho muita esperança nas novas gerações. Vejo que têm hoje em dia muito mais consciência destas questões. A escola tem tido um papel fundamental nesta mudança. Mas ainda vemos sinais alarmantes como a violência no namoro. Os rapazes a reproduzir os estereótipos machistas que persistem nas famílias e na sociedade. O caminho já o referi. É sobretudo investir cada vez mais na educação e formação para os Direitos Humanos nas escolas. E desde muito cedo, desde o pré-escolar. Com programas adaptados a essas idades obviamente.
FT- É com enorme respeito que vemos o seu (e de tantas pessoas) trabalho por estas causas. Terminando, como podemos também cada um de nós, no dia-a-dia, atenuar o problema da violência doméstica?
FB- Todos somos responsáveis. Dizemos isto muitas vezes quando morre mais uma mulher, uma criança. Não é uma frase vazia, somos mesmo responsáveis. E a responsabilidade é continua! Todos, no nosso dia a dia, podemos ter um papel. Em primeira linha denunciando todas as situações de violência que tivermos conhecimento. O crime é de natureza pública há alguns anos mas a generalidade das pessoas ainda não assume como sua esta responsabilidade. São as crenças e mentalidade que ainda persistem na sociedade de que a família é um espaço intocável no qual não devemos interferir. É preciso desfazer este estereótipo e denunciar, meter a colher, sempre que soubermos de uma situação de violência. Este é um papel fundamental. Depois, não menos importante, é começar em nossa casa. Dar o exemplo aos nossos filhos, mostrar-lhes a realidade, o sofrimento alheio, educa-los a ter empatia com os outros, com o sofrimento dos outros. Transmitir-lhes diariamente os valores fundamentais da igualdade, do respeito pelo outro, da proteção dos mais fracos, das vítimas de discriminação. É um trabalho diário e contínuo que cabe em primeira linha aos pais. Uma ideia que podia ser útil, em cooperação com as escolas, seria criar programas de formação para as famílias nas escolas que envolvessem pais e filhos, integrados nas actividades escolares. Envolver os pais nestes programas escolares pode ajudar muito a reeducar também os pais de forma a interromper o ciclo de transmissão dos estereótipos de discriminação. Por fim, e para terminar, nunca mas nunca podemos desistir das nossas causas nem dos nossos propósitos! Como me disse um dia, a Dra Manuela Ramalho Eanes “Se é para nos dedicarmos a algo que não seja pequenino”. E por isso aqui estou de alma e coração à causa! Se não for assim não vale a pena!